26. Zênite

25. Yom Kippur

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



O domingo amanheceu radiante. Chovera quase a noite inteira, e o Sol, espiando por cima das montanhas que rodeavam a fazenda do Sr. José e D. Maria, iluminava a folhagem ainda molhada da chuva. Sr. João, parado à porta da cozinha e olhando a natureza deslumbrante, achou aquela cena muito apropriada. Era como se a própria natureza chorara com eles durante a noite, e agora, com a alma purificada pela chuva, acordava para um novo dia.

Haviam chegado no Vale Verde no final da tarde do dia anterior, e a conversa fora longa. Quando finalmente foram dormir, perto da alvorada, estavam exaustos — não tanto pela viagem, mas principalmente pelo mar emocional pelo qual haviam navegado. O coração de cada um doía, pois haviam recordado dos últimos vinte e cinco anos, com todos os traumas e medos associados a eles — mas em cada coração havia uma esperança preciosa. Era como a cena que o Sr. João contemplava — a noite acabou, a tempestade se abateu, e agora nasce um novo dia.

Claudineia e sua mãe saíram, de mãos dadas, do quarto onde haviam dormido juntas. “Bom dia, pai!” ela disse; “Foi difícil acordar hoje, viu!”

“Eu imagino, minha filha”, ele respondeu, beijando as duas carinhosamente. “Se não fosse pela Ceia agora cedo, poderíamos ter ficado mais na cama. Mas não podemos nos atrasar pra esse compromisso tão importante”.

Apontando para os montes à sua frente, ele acrescentou: “Venham ver como a manhã está linda!”

Apreciaram a beleza da Criação de Deus, mas por pouco tempo — logo D. Maria estava chamando para o café, e todos sentaram ao redor da mesa. Sr. José pediu que Davi agradecesse pelos alimentos, e participaram alegremente daquela festa — do tipo que só o povo simples da roça sabe proporcionar.

Algumas horas depois, já tendo participado também da festa espiritual que é a Ceia do Senhor, celebrada todo primeiro dia da semana pela igreja no Vale Verde, estavam novamente reunidos em torno da mesa, desta vez para almoçar. E Claudineia levantou o assunto no qual todos estavam pensando, mas sobre o qual ninguém queria falar.

“Pai, a gente veio pra cá tão corrido, que nem combinamo direito como ia sê. O senhor tá pensano em i embora, pra abri a loja amanhã? Não dá pra ficá um pôco mais aqui? Assim, tipo um ou dois meses!”

Todos riram, mas estavam atentos à resposta do Sr. João. Ele abaixou a cabeça por um breve instante, e quando levantou-a novamente havia um brilho nos seus olhos que animou Claudineia. Apesar do pouco tempo, ela já conhecia bem seu pai.

“Antes de responder, quero falar um pouco sobre ontem. Vocês sabiam que ontem, no calendário judeu, foi o dia de Yom Kippur?”

“Que que é isso, pai?” perguntou Claudineia.

“É uma das sete festas anuais que Deus instituiu para o povo de Israel, mencionadas em Levítico capítulo 23 — o Dia da Expiação, em português. Os judeus ainda celebram essas festas hoje em dia, mas não aceitam o caráter profético delas. Mas isso não vem ao caso — o interessante dessa festa é que nela Deus exigia que todo mundo afligisse a sua alma.”

“Uai, era uma festa de tristeza?”

“Sim, mas uma tristeza que logo conduzia à alegria — cinco dias depois começava a Festa dos Tabernáculos, onde havia alegria e regojizo por uma semana. O Dia da Expiação, no calendário de Deus, representa o dia futuro quando vai se cumprir a profecia de Apocalipse 1:7: ‘Eis que vem com as nuvens, e todo olho O verá, até os mesmos que O traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre Ele’. Quando o Senhor voltar para estabelecer o Seu reino aqui na Terra, no final da Grande Tribulação, haverá grande lamentação por parte do remanescente de Israel. Eles irão finalmente entender o quanto foram rebeldes contra Deus e o Seu Filho, e irão se arrepender com profunda tristeza. Mas logo depois desfrutarão das bênçãos do Milênio. A tristeza logo dará lugar à alegria!”

“De certa forma a gente teve um Yom Kippur aqui ontem, então”, sugeriu Davi.

“Sim; guardadas as devidas proporções, é claro. Ontem foi um dia de tristeza, arrependimento e confissão, que resultou em alegria. Emprestando as palavras de Paulo, foi um arrependimento do qual nós nunca vamos nos arrepender!”

“Que legal!”, disse Davi. “Esse jogo de palavras tá na Bíblia?”

“Sim, meu filho; está em II Coríntios 7:10. Paulo está falando sobre como a tristeza que vem quando Deus nos corrige é tão diferente da tristeza do mundo. A tristeza do mundo, ele escreve, opera a morte — quer dizer, conduz à morte — mas a tristeza segundo Deus opera arrependimento para salvação, da qual ninguém se arrepende.”

Cláudia, que acompanhava com interesse esse assunto tão novo para ela, disse com voz baixa e hesitante: “Eu vivi isso na prática! Acho que nunca senti tanta tristeza quanto ontem — mas mesmo no meio daquele choro e aflição, eu tinha paz também, sabe? Eu sabia que tava fazeno a coisa certa. A tristeza que eu tive na minha vida passada só produziu morte — vi tanta gente morrê à toa! Era uma tristeza que não tinha nenhum alívio, sabe? Só dor, e mais tristeza, e mais dor. Mas a tristeza de ontem foi diferente. É como você falô,” ela disse, olhando para o Sr. João; “A tristeza de ontem estava associada ao arrependimento, e a gente não vai se arrepende de tê se arrependido!”

“É por isso que todo cristão precisa aceitar ser corrigido”, continuou Sr. João. “Esse é realmente o argumento de Paulo naquele trecho que eu citei. Ele fala que a primeira epístola dele para eles — que foi um grande puxão de orelhas — produziu tristeza neles. Mas ele fala que ficou contente com essa tristeza, porque era uma tristeza produzida por Deus, e que seria para a edificação espiritual deles. É o mesmo que disse o rei Davi: ‘Repreenda-me o justo, e será uma bênção’. Só que a maioria das pessoas hoje em dia — principalmente a sua geração”, ele disse, olhando para Davi e Claudineia, “Não suporta ser corrigida. Parece que pensam que são incapazes de errar, e se alguém tenta chamar a atenção deles, eles logo se colocam na defensiva. É muito triste isto, pois quem mais perde com essa atitude são eles mesmos!”

Sr. José, que sempre gostava de ouvir o Sr. João falando sobre a Bíblia, lembrou de uns versículos que tinha lido naquela manhã, na sua leitura diária, e acrescentou: “Eu li hoje de manhã em Provérbios 27. Salomão disse: ‘Melhor é a repreensão franca do que o amor encoberto. Leais são as feridas feitas pelo amigo’. Mas é como o senhor disse: poucos jovens hoje em dia aceitam ser corrigidos, irmão!”

Claudineia de repente lembrou de como tudo começara, e exclamou, rindo: “E por falar em correção, pai, o senhor tá enrolando a gente. Eu perguntei sobre os planos do senhor, e o senhor começô a falá de Yom Kippur e tristeza que traz alegria, e quase faz eu esquecê da minha pergunta!”

Todos riram e olharam para o Sr. João novamente. Ele, por sua vez, olhou para Davi com um sorriso, e disse: “Quem fala: eu ou você?”

“O senhor começa e eu termino”, o moço respondeu, sorrindo largamente.

Os olhos de Claudineia brilhavam, enquanto olhava de um ao outro. Ela já sabia que havia alguma notícia boa por vir, mas o que? Será que seu pai ficaria muitos dias com eles?

“Bem”, disse Sr. João com calma, “Faz alguns dias que o Davi e eu estamos interessados em imóveis aqui nessa região. Fizemos contato com algumas imobiliárias pela internet, e poucos dias atrás fechamos um negócio interessante. Lembra do armazém no centro da cidade, dez quilômetros daqui?”

“Lembro”, disse Sr. José. “Está abandonado a uns três anos!”

“Isso.” Ele olhou com ternura para sua filha, os olhos lutando para segurar suas lágrimas. “Eu comprei aquele armazém, filha, e pretendo transferir minha loja pra cá. E tem uma casa grande em cima do armazém, onde eu e a sua mãe podemos começar de novo nossa vida.”

“Que legal, pai!” exclamou a moça. Mas quase na mesma hora seu semblante mudou, e com voz trêmula ela acrescentou: “Mas eu e o Davi vâmo casá daqui a três meses, e aí vâmo ficá longe do senhor e da mamãe de novo?”

Davi, sorrindo, pegou na mão dela com carinho, e disse: “Agora é a minha parte da história — e tem mais um Yom Kippur aí. A sua tristeza vai se transformá em alegria, meu amor. Eu também comprei uma casa na entrada da cidade aqui pra nós, e vô trabalha como sócio do seu pai na loj …”

Ele não conseguiu terminar a frase. Claudineia gritou de alegria, abraçando um por um dos que estavam ali, chorando e rindo, sem conseguir conter sua alegria.

Quando ela se acalmou um pouco, Sr. José, que sempre lembrava de agradecer a Deus, sugeriu que orassem mais uma vez. Ele agradeceu a Deus por estarem todos juntos novamente, e por que todos tinham a vida eterna pela fé no Senhor Jesus.

E naquele ambiente tão simples, em torno de uma mesa rústica numa pequena fazenda do interior, Cláudia finalmente alcançou seu sonho de infância. Pegando na mão de Claudineia e olhando em redor da mesa, ela disse: “Gente, obrigada. Eu passei a vida inteira quereno sê rica, e hoje, finalmente, eu descobri quanta riqueza Deus já me deu. Sô a mulher mais rica do mundo!”

Que pena que, para muitos, ainda se cumprem as palavras do Senhor Jesus: “a sedução das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera” (Mt 13:22).


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