26. Zênite

17. Quase

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]


Cláudia acordou assustada. Demorou um pouco para lembrar que estava no hospital. Olhou ao redor, e uma pontada de dor na perna a fez relembrar do acidente. Ou melhor, daquilo que contaram para ela sobre o acidente, pois havia umas lacunas na sua memória. Ela se lembrava de sair do apartamento em cima da pizzaria — depois só lembrava de acordar no hospital. As enfermeiras disseram que ela fora atropelada por um ônibus, mas o único dano sério fora uma perna quebrada (“E beeem quebrada!”, como a enfermeira havia dito). Havia múltiplas escoriações, um corte no seu lábio superior, e a cabeça doía muito — mas, em vista do que haviam dito sobre o acidente, ela estava bem.

A enfermeira entrou naquele momento e sorriu para ela. “Boa tarde; como se sente?”

“Bem, eu acho”, respondeu Cláudia, sem muita certeza. Depois sorriu e perguntou: “Será que posso ir embora logo?”

A enfermeira sentiu-se aliviada — era a primeira vez que via Cláudia sorrir desde que chegara, uma semana atrás, desacordada e coberta de sangue. Apesar de bastante machucada, não estava tão ruim quanto parecera à primeira vista. Passara por uma cirurgia na perna, e estava recuperando bem. Mas estava demorando a recuperar suas forças, e a equipe médica estava preocupada. “É problema da mente dela”, dissera o médico. “Ela parece que perdeu a vontade de viver, e não está se esforçando para recuperar as forças”.

“Se você continuar sorrindo assim, acho que não demora não!” a enfermeira respondeu. “Mas se continuar dormindo o dia inteiro, e tendo pesadelos durante a noite, fica difícil! Depende de você!”

Cláudia sorriu, concordando, e olhou em volta do quarto. De repente viu o folheto colocado na mesa de cabeceira ao lado da sua cama, e ficou confusa — ela lembrava de tê-lo deixado para trás quando saiu do apartamento. Será que voltara para buscá-lo novamente?

A enfermeira percebeu, e disse: “Foi seu marido que deixou aí. Ele vem todo dia …”

Parou quando percebeu que Cláudia chorava. Não sabia o motivo das lágrimas, mas não perguntou.

Cláudia se recompôs, e disse: “Quando é o horário de visita? Se ele vié hoje, não quero vê ele, não.”

“Por que não, meu bem? Ele tem alguma coisa a vê com seu acidente?”

“Não, não! Ele é um anjo! Mas é que …”

Parou novamente para chorar. Era um choro calmo, como a chuva mansa que parece pedir desculpas por não saber por que veio.

Sem erguer os olhos, ela perguntou: “Como ele me achou aqui?”

“Não tenho certeza. Na sua carteira tinha o número de uma mulher — acho que era Márcia — e o hospital ligô pra ela. Pouco depois o seu marido chegô. A gente não podia dexá ele ficá de acompanhante, porque tinha que sê uma mulher, né? Aí ele ficô sentado ali na recepção até sê saí da cirurgia, e só foi embora quando a gente garantiu que sê tava bem. E todo dia ele vem aqui no horário de visita. Senta aí do seu lado, e fica olhano você dormi. Aí quando acaba a hora de visita ele vai embora de novo.”

Ela não disse, mas pensou: “E é a única visita que você recebe!”

Estavam em silêncio, quando uma leve batida na porta chamou a atenção das duas. “Posso entrar?” perguntou Sr. João.

A enfermeira olhou para Cláudia, que voltou a chorar, mas balançava a cabeça afirmativamente. Prudente e sábia, ela logo se afastou e deixou os dois à vontade.

Sr. João deixou que ela chorasse um pouco, depois disse: “Espero que você não se importe de eu vir aqui te ver.”

“Não, não, claro que não. Mas confesso que não tô entendendo.”

Sr. João abaixou a cabeça, orou pedindo sabedoria, e respondeu: “Quando eu saí da pizzaria na semana passada, eu me sentei na calçada e orei a Deus. Agradeci a Ele por me ter permitido encontrar você e lhe entregar o folheto, e decidi dar tempo para que Ele agisse na sua vida. Eu não queria pressionar você — tinha medo de assustá-la, sabe? Mas quando a Márcia me avisou do seu acidente, eu vi que Ele já tinha agido, e me coloquei à disposição dEle para ajudar você a encontrar a salvação. Se você quiser, é claro.”

“Eu quero — mas acho que pra mim não tem mais jeito. Eu já fiz tanta coisa pra tanta gente … Você ainda me ama?”

A pergunta o pegou de surpresa. Precisou abaixar a cabeça novamente, e desta vez demorou mais para levantá-la. Quando o fez, olhou bem nos olhos dela, as lágrimas dele parecendo reflexos das lágrimas dela. Falou em voz baixa:

“Aquele amor apaixonado que eu tinha vinte e cinco anos atrás morreu. Você levou ele embora quando saiu de casa aquela noite, levando minha filhinha.” Esforçou-se para controlar as emoções, e continuou: “No começo eu senti ódio de você. Depois, pela misericórdia de Deus, eu entendi que precisava te perdoar. Foi difícil, mas entendi pela Palavra de Deus que, mesmo tendo me abandonado, você continuava sendo minha esposa. Permaneci sozinho esses anos todos, e todo dia orava pela salvação sua e da minha filhinha. E posso dizer, hoje, que te amo mais do que no dia do nosso casamento.”

As lágrimas dela aumentaram, mas ela não sabia o que dizer. Ele continuou:

“Quando casamos eu estava apaixonado, num sentido muito egoísta. Eu queria ter você — era só isso que importava. Mas Deus tirou você de mim, e me ensinou a amar você de um jeito que eu nem imaginava. Quando penso em você hoje eu penso em como posso te ajudar, e estou disposto a fazer qualquer coisa ao meu alcance para que você encontre o perdão de Deus, e a salvação em Jesus Cristo. Hoje, não te amo no sentido romântico da palavra — mas te amo de verdade!”

Ele teve a sabedoria para ficar calado enquanto ela digeria estas palavras. Uma parte dela se sentia ainda mais culpada com tudo que ele dizia, e tinha vontade de gritar: “Sai daqui! Eu te odeio!” Mas outra parte estava profundamente tocada pela fidelidade e abnegação desse homem que se preocupava tanto com ela.

Acontecera tanta coisa nos últimos dias — a morte do Bigodinho, as notícias da sua filha, o folheto, o acidente. Cláudia, sempre faladeira e afoita, não sabia o que dizer.

Ficaram em silêncio vários minutos. Quando ela começou a falar, falava pausadamente, e tão baixo que Sr. João precisou se esforçar para escutar:

“Obrigada pelo folheto. Quando eu fui presa, duas mulheres visitavam a gente toda semana, e me deram esse mesmo folheto que você me deu. Eu sei ele de cor. E gosto dele. Mas eu machuquei muita gente. Eu nunca quis machucá, mas eu só pensava em mim. Não tem mais salvação pra mim. Nem seria justo Deus me perdoá, depois de tudo que eu fiz.”

Sr. João tirou um Novo Testamento do bolso, e abriu em Mateus capítulo 11. Cláudia chorava copiosamente — um choro fraco e desiludido, mas não desesperado. Ele esperou um pouco, depois disse:

“O Senhor Jesus disse: Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o Meu jugo, e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve.”

Ele leu devagar, como se cada palavra fosse mais importante que a anterior. E depois leu novamente. Cláudia havia escondido o rosto nas mãos, e chorava.

Após alguns minutos de oração silenciosa, Sr. João disse: “Nesses poucos anos em que conheço a Deus, aprendi uma coisa, da qual tenho absoluta certeza: se você quiser ser salva, Deus quer te salvar. O Senhor Jesus disse: O que vem a Mim de maneira nenhuma o lançarei fora. A Bíblia também diz que Deus deseja que todos sejam salvos. Se eu, que sou homem e cheio de falhas, consegui te perdoar, pode ter certeza que o meu Deus deseja te perdoar também!”

Ele falou com uma convicção e urgência contagiantes. Depois se levantou e perguntou: “Posso voltar amanhã?”

“Por favor”, ela disse. Tirou as mãos do rosto, e sorriu — o mesmo sorriso lindo e espontâneo que ele já se acostumava a ver na sua filha!

Ele se retirou, alegre e triste, animado e preocupado. Como era difícil lançar a semente e esperar ela brotar no tempo certo — no tempo estabelecido por Deus!

Ele teria se sentido melhor se pudesse ver Cláudia, lá no quarto, lendo Mateus 11 novamente no Novo Testamento que ele deixara para trás. Mas ele não viu. Nem ouviu ela conversando com a enfermeira, que foi vê-la quando ele saiu.

“Ele te ama muito, meu bem!”

“Eu sei. E eu também amo ele. Só que acho que demorei demais pra descobri isso!”

Comentários

  1. E Cláudia! O próximo minuto pode ser tarde demais...
    Ansiosa pelo próximo capítulo.

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    1. É, Quézia, a Bíblia diz: "Eis aqui agora o dia da salvação" (II Co 6:2). É muito arriscado deixar para depois, quando se trata da alma!

      Abraços.

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