26. Zênite

5. Expectativa

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]




“Vó, pó pô pó?”

Claudineia falava com a avó, mas olhou de canto de olho para o Davi com um leve sorriso nos lábios. Estavam na cozinha da casa do Sr. José e D. Maria, e Claudineia estava preparando o café. A água estava fervendo, e ela segurava a lata com o pó de café nas mãos. Perguntou daquele jeito só para provocar o namorado, que achava engraçado o sotaque do povo do Vale Verde. Sempre que ele vinha visitá-la, ela gostava de exagerar um pouco no sotaque — só por brincadeira.

Sua avó era mais séria, mas conhecia bem o jeito brincalhão da neta, e não se importava. Respondeu: “Pode por sim, minha filha. Duas colheres de pó — colheres bem cheias!”

Davi riu da brincadeira da sua namorada, depois deixou seus olhos percorrem o ambiente. Como ele se sentia bem ali! Estar com pessoas tão amáveis e amadas, no ambiente simples da fazenda, era quase perfeito. Se não fosse pela lembrança triste das revelações da semana passada, provavelmente seria perfeito! Mas ele não conseguia tirar da sua mente as coisas que Claudineia lhe havia contado.

Era sexta-feira, e ele acabara de chegar. Conseguira uma folga no serviço e pegara o primeiro ônibus da madrugada para o Vale Verde. A viagem era longa, e ele só havia chegado no final da tarde. Agora, de banho tomado e abastecido após uma deliciosa janta, aguardava um café fresquinho (um cafezinho depois do jantar, e antes de dormir, era uma das coisas boas que aprendera no Vale Verde). Depois teriam oportunidade de conversar antes de dormir. “Deus tem sido muito bom pra mim”, ele pensou.

Quando Claudineia trouxe o café, Sr. José sentou na mesa com eles, pensativo. Esperou todos se servirem, e depois perguntou: “Claudineia, sua vó e eu queríamos conversar com vocês dois sobre o que aconteceu na semana passada.” Ele falava sem pressa, escolhendo as palavras. “Principalmente, queríamos saber onde você ouviu falar sobre a Cláudia.”

“É que o marido dela reúne lá na igreja no Jardim das Flores, onde o Davi reúne”, ela respondeu. Ela ia falar sobre o desejo que o Sr. João tinha de encontrar sua filha, mas a expressão de espanto no rosto dos avós a fez parar. “O que foi, vô?”

Sr. José olhou para sua esposa, pegou na mão dela, e depois perguntou para o Davi: “Como é o nome dele?”

“Sr. João Brito.”

Os avós trocaram olhares novamente, e era nítida a confusão que sentiam. Depois de uma pequena pausa, Sr. José disse: “Alguma coisa não está batendo”. Abaixou o olhar momentaneamente, depois olhou novamente para os jovens e continuou: “Quando a Cláudia chegou de volta de São Paulo, ela trouxe uma criança recém-nascida com ela. Disse-nos que a criança era filha dela com esse João Brito, e nos fez prometer que nunca permitiríamos que esse homem visse sua filha …”

“Mas por que, vô?”

“Ela temia pela segurança da sua filhinha. E ela nos convenceu que realmente a menina corria perigo. Mostrou-nos diversos recortes de jornal que ela trouxera com ela e que provavam que esse João Brito era um dos mais violentos traficantes daquela região. Ela veio para cá fugindo dele, e tinha medo que ele viria atrás da criança.”

Claudineia olhou incrédula para o Davi, pegando-o pelo braço: “O Seu João, bem?”

Davi, atônito, não sabia o que dizer. “Como o senhor disse, Seu José, alguma coisa não tá bateno. O Seu João é um comerciante respeitado na nossa vila, e é um dos anciãos da igreja local lá no Jardim das Flores. Alguma coisa tá errada nessa história.”

Sr. José, intrigado, perguntou: “Há quanto tempo você conhece esse Sr. João?”

“Mais ou menos uns cinco anos. Sei que ele mudô pra nossa cidade uns sete ou oito anos atrás, vindo da cidade vizinha. Mas não dá pra imaginá ele sendo um traficante, muito menos violento. É um dos homens mais mansos e calmos que eu conheço, Seu José!”

“É … não sei o que dizer. Nós temos informações sobre a filha da Cláudia e do João, mas demos nossa palavra de que não iríamos divulgar essas informações pra ninguém, principalmente pra ele. Por outro lado, vocês estão nos dando informações novas, e isso muda totalmente a situação. Não queremos quebrar nossa promessa, mas também não queremos cometer nenhuma injustiça em relação ao João e a filha dele.” Parou novamente, olhando para sua esposa; depois continuou, falando diretamente com ela: “Eu acho que devemos pegar o carro amanhã de madrugada e ir lá conhecer esse João!”

“Acho que é a única opção”, concordou ela. “Estou tão confusa e assustada, e sei que não vou ter sossego enquanto não descobrirmos a verdade!”

“Resolvido, então. Vamos tentar dormir um pouco, e eu chamo todo mundo lá pelas quatro e meia. Assim conseguimos chegar no Jardim das Flores antes de escurecer.”

Sr. José os conduziu numa palavra de oração, e pouco tempo depois estavam todos deitados. Mas foi difícil pegar no sono. D. Maria pensava na terrível possibilidade de terem sido enganados durante tanto tempo. “Mas nós vimos os jornais — aquilo não foi invenção dela!”, Sr. José argumentou. Claudineia tinha certeza que a Cláudia havia inventado tudo. Foi a primeira que pegou no sono e, impulsiva e idealista, sonhou que o Sr. João era o pai dela, e que tudo daria certo no final. Davi, coitado, demorou muito tempo para conseguir dormir. Sempre que ia no Vale Verde dormia numa rede na varanda da casa. Gostava de olhar o Céu estrelado, mas nem percebeu quando o impressionante Júpiter, só perdendo em brilho naquela noite para a Lua, deixou o Céu lá pela meia-noite, e Vênus (o único planeta que brilha mais que Júpiter, e ofusca qualquer estrela) já estava quase surgindo no Leste quando ele finalmente dormiu. Não conseguira organizar seus pensamentos. Tinha certeza que o Sr. João não era aquilo que a Cláudia havia dito — mas como explicar os recortes de jornal?

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O Sol espiava por cima do canto da Terra, e Vênus, tendo cumprido seu papel de “Estrela d’alva”, dizia adeus à noite. No banco de trás do carro Claudineia e sua avó dormiam — não tranquilamente, mas pelo menos profundamente. Sr. José dirigia, e Davi, meio curioso, meio desejando espantar o sono, comentou: “Fiquei impressionado como vocês dois conseguiram guardá o segredo sobre a filha da Cláudia por vinte e cinco anos!”

Sr. José, que sempre falava com calma, respondeu sem pressa: “Fomos criados desde criança a aceitar que uma pessoa digna deve ter palavra. Se prometemos à Cláudia guardar um segredo, então era nossa obrigação cumprir aquilo que prometemos. Quando a Maria e eu nos convertemos ao Senhor Jesus, cerca de dez anos atrás, ficamos na dúvida sobre o que fazer, pois nossa promessa havia sido feita no tempo da incredulidade. Falamos aos irmãos da igreja local sobre nossa situação, sem revelar detalhes — só dissemos que tínhamos feito uma promessa, anos atrás, de guardar um segredo, e queríamos saber se ainda estaríamos presos à promessa feita no tempo da incredulidade. Lembro que um dos irmãos — já falecido — nos perguntou se era um segredo que nos envolveria em algum tipo de pecado. Sabe, se o nosso silêncio estaria prejudicando alguém, ou encobertando algum crime, ou algo dessa natureza. Respondemos que não — nosso silêncio não fazia mal pra ninguém, e poderia preservar a segurança de uma criança. Pelo menos, era isso que eu pensava até ontem — agora não sei o que pensar …”

Ele se calou por um pouco, absorto em seus pensamentos. Davi nunca fora precipitado para falar, e aprendia dia a dia sobre o valor do silêncio, então não se pronunciou. Quase três minutos depois o Sr. José de repente lembrou da conversa, e continuou: “O irmão citou um versículo que diz que quem é fiel guarda um segredo” — ele referia-se a Provérbios 11:13: “O mexeriqueiro revela o segredo, mas o fiel de espírito o mantém em oculto” — “e nós temos tentado viver à luz dessa verdade.”

“É”, disse Davi, “vocês foram mesmo fiéis”. Depois, franzindo um pouco a testa, acrescentou: “Como a gente aplica esse versículo da Bíblia em relação à hipocrisia? Se eu vejo um defeito em alguém e não falo nada, eu tô sendo hipócrita, né?”

Sr. José tinha pouco estudo acadêmico, mas nos poucos anos desde a sua conversão, já lera a Bíblia inteira diversas vezes. Tinha dificuldade em guardar referências e decorar versículos, mas a constante exposição às sagradas Escrituras fizera dele um homem sábio. Olhando rapidamente para Davi, depois concentrando na estrada novamente, ele respondeu: “Acho que ser sincero não quer dizer falar tudo o que penso, mas sim nunca falar o que não penso!”

Davi considerou estas palavras com calma. Era um jovem muito inteligente, mas gostava de analisar algo de todos os ângulos antes de se pronunciar. Finalmente, disse: “Quer dizer que às vezes devo ficá calado sobre alguma coisa que não concordo? Não dizem que quem cala consente?”

“É, dizem, sim. Mas a Bíblia não diz isso; ela diz que há tempo de ficar calado e tempo de falar. O Senhor Jesus, por exemplo, foi sincero e contundente ao chamar os fariseus de hipócritas, insensatos, cegos, sepulcros caiados, etc. Mas na única ocasião em que Ele Se encontrou com Herodes Ele permaneceu em silêncio, e não disse nem uma palavra. Herodes queria ouvir alguma coisa dEle, mas Ele Se manteve calado. E certamente Ele foi sincero também nessa ocasião. Como tudo na vida, o difícil é encontrar o equilíbrio, e saber quando falar e quando me calar!”

A conversa continuou por muitos quilômetros, e foi muito proveitosa. Quando já estavam em silêncio novamente, cruzaram o belo rio que separa os dois estados, e de repente Davi percebeu a incongruência da situação que estava vivendo: viajara um dia inteiro, e poucas horas depois estava fazendo a viagem de volta, passando pelos mesmos lugares! Mas não se sentia cansado — estava ansioso para saber o que Sr. José e D. Maria teriam a dizer quando encontrassem com o Sr. João. Qualquer que fossem os erros dele no passado, Davi sabia que continuaria respeitando e admirando aquele homem que tanto lhe ajudara espiritualmente. E se fosse possível uni-lo com sua filhinha, seria uma maravilha!

No banco de trás, Claudineia cochilava, sonhava, acordava assustada, e cochilava novamente. Estava confusa e ansiosa, e parecia que sentia uma mão apertando o seu ingênuo, mas sincero, coração. Queria muito que o Sr. João encontrasse sua filha — quanto ao passado, era passado.

O casal idoso já aprendera a deixar o amanhã nas mãos de Deus. Diversas vezes nestes novecentos e cinquenta quilômetros que haviam viajado o Sr. José sentira que seus pensamentos começavam a ir muito longe, e então orava no seu coração: “Senhor, Tu sabes tudo. Estou entregue nas Tuas mãos, e sei que o Senhor vai me guiar.”

E assim a viagem transcorreu sem percalços, com a graça de Deus. A manhã gostosa e revigorante deu lugar ao calor da tarde, e a tarde já se preparava para dar adeus quando viraram a última curva e avistaram seu destino. Sr. João ainda estava na sua loja, e não fazia a menor ideia de que, em poucos minutos, estaria no centro de um redemoinho de emoções.

Realmente, Deus é muito sábio em não nos revelar o futuro antes da hora!

[Leia a parte 6. Filha!]


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