26. Zênite

2. Brincadeira

[Se quiser, leia primeiro a parte 1. Aniversário]



“Amor, cê sabe o nome da sua mãe?”

Claudineia sorriu, e respondeu ao namorado: “Então cê também chegô a pensá que eu poderia sê filha do Seu João?”

Ele riu meio sem-graça, e disse: “Sei lá; cês tem a mesma idade, são da mesma região, e cê não conheceu seus pais ... Quem sabe!”

“É, é muita coincidência!” Ela hesitou um pouco, depois continuou: “Eu sei que cê me entende; a vontade de sabê quem são seus pais é tão grande, que a gente acaba quereno acreditá em qualquer coisa! No começo eu pensei, sim ... Mas depois a ficha caiu. O nome da mulher dele é Cláudia, e minha mãe chamava Isabel Mendonça.”

“É, e o sobrenome do Seu João é Brito. Cláudia Brito e Isabel Mendonça. Não tem nada a vê mesmo. Mas deixa pra lá”, ele exclamou, tentando mudar de assunto; “Tô muito contente que cê vai participá da Ceia aqui pela primeira vez. Tenho certeza que cê vai gostá. Tem exceções, mas geralmente é uma reunião muito boa. Quase todos os irmãos oram, e às vezes até parece que é uma oração só, sabe? Como se um orasse um pedacinho da oração, depois otro continuasse onde ele parô, e assim por diante. É difícil explicá!”

Estavam caminhando de mãos dadas para a reunião, alguns passos à frente dos tios do Davi. A conversa da noite anterior ainda estava bem viva em suas mentes, mas teria que ser colocada de lado agora, pois aproximava-se o momento mais importante da semana: a oportunidade de reunir com uma igreja local e lembrar do Senhor na Ceia.

E foi realmente precioso. Iniciaram cantando “Rude cruz se erigiu”, e os próximos cinquenta minutos foram ocupados com orações, uma leitura (Salmo 22), e mais dois hinos (“Rosto divino, ensanguentado” e “Bendita a cruz de Cristo”). Pareceu mesmo que um irmão continuava a oração do anterior. Tudo focalizou na cruz e no Salvador bendito que ali deu a Sua vida por nós, até chegar o momento de todos participarem do pão, e em seguida todos participarem do cálice.

Quando a reunião acabou, Claudineia voltou para casa na companhia da tia do Davi, enquanto seu namorado ajudava a arrumar os bancos para a reunião da noite. Cerca de dez minutos depois, Davi, seu tio e Sr. João caminhavam juntos para suas casas, e Davi disse: “Seu João, eu queria fazê uma festa surpresa pro aniversário da Claudineia, que foi ontem. Pode sê na casa do senhor? Pra ela não suspeitá de nada.”

“Claro, sem problemas. Agora à tarde?”

“Não, eu pensei depois da reunião. Os jovens vão todos pra casa do senhor, aí o senhor liga pra mim e pede preu ir na casa do senhor arrumá a luz. O senhor pode dizê que acabô a energia, entende, e aí eu falo pra Claudineia que sempre que cai o disjuntor na casa do senhor eu vô lá e arrumo rapidinho. Aí a gente chega com tudo escuro, e assim que a gente entrar, alguém liga a luz, e a gente canta parabéns pra ela!”

“Certo.” Depois de uma breve pausa, Sr. João continuou: “Só sugiro que, ao invés de eu dizer que acabou a energia, eu ligue dizendo que quero conversar com vocês dois um pouco, pode ser? Acho que ela não vai suspeitar de nada.”

Davi concordou, sem dizer muita coisa, pois já estavam chegando na casa do Sr. João. Ele se despediu, e Davi e seu tio continuaram caminhando.

Depois de meio quarteirão em silêncio, o tio perguntou: “Você não gostou muito da sugestão do Sr. João, não é?”

“É, pra falá a verdade, num entendi porque ele falô aquilo.”

“O Sr. João tem uma preocupação muito grande em evitar a mentira a qualquer custo, sabe?”

“Mas é só brincadeira, tio!” interrompeu Davi, um pouco impaciente.

Seu tio sorriu, e depois continuou: “Eu sei. O Sr João também tem senso de humor e gosta de uma brincadeira, como você bem sabe. Mas ele prefere escolher uma brincadeira que não envolva mentir, entende?”

“É, entender, acho que entendo. Mas é meio exagerado, né?”

“Talvez; mas respeito muito a convicção dele. Se você quiser ler depois Provérbios 26:18-19, é um texto que ele gosta muito.” Sorriu ao acrescentar: “Não sei se ele está certo, mas acho que ele não está errado!”

Davi olhou para o seu tio. Não tinha entendido muito bem a questão de não estar nem certo nem errado, e não sabia o que dizia o versículo em questão, então não prosseguiu no assunto. Assim que chegaram em casa, porém, foi logo deixar suas coisas no quarto, e antes de voltar para a sala, deu uma olhada em Provérbios 26. Ele leu: “Como o louco que solta faíscas, flechas e mortandades, assim é o homem que engana o seu próximo e diz: Fiz isso por brincadeira.” Certamente havia uma ligação com o assunto que conversaram, mas Davi não achou que ele se enquadrava na condenação de Salomão.

Sua namorada estava em casa, porém, e iria embora naquela noite. Com um sorriso nos lábios e uma canção no coração, ele foi ao encontro dela; mais tarde ele poderia pensar sobre o Sr. João e Salomão.

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A festa-surpresa transcorreu muito bem. Uma irmã (ótima confeiteira) levou um bolo, alguns jovens levaram salgados e refrigerantes, e Claudineia não suspeitou de nada. Ficou radiante quando viu todos reunidos, e tiveram um tempo muito gostoso de comunhão.

Perto da meia-noite, Davi e seu tio levaram Claudineia à rodoviária para pegar o ônibus para sua casa. Chegando lá, encontraram Sr. João esperando-os.

“Seu João”, exclamou Claudineia; “Que surpresa!”

“O Davi vai ficar muito triste com a sua partida, minha filha, então achei melhor vir aqui ajudar a consolá-lo”, disse Sr. João com um sorriso maroto nos lábios.

Davi sorriu também. Com o braço em torno dos ombros da Claudineia, estava triste por saber que ela estava de partida, mas contente por ainda ter alguns minutos com ela. Ficou contente em ver o Sr. João ali, e deu um abraço sincero nele.

Quinze minutos depois, as despedidas feitas e as lágrimas enxugadas (mas o coração ainda apertado), voltavam para casa, caminhando em silêncio sob o Céu estrelado. Era uma noite agradável, não muito quente. Davi estava com o pensamento na linda jovem no ônibus, quando Sr. João de repente disse: “E aí, Davi, o que você achou de Provérbios 26:19?”

Davi não conseguiu esconder a surpresa, olhando rapidamente para seu tio: “Eu? Não sei ...”

Sr. João sorriu e disse: “Seu tio não disse nada, não; eu só dei um tiro no escuro. Tinha certeza que você estranharia a minha colocação hoje de manhã, e como conheço bem seu tio, imaginei que ele iria mencionar isso. E eu queria muito conversar com você sobre isso, por isso levantei o assunto. Não faço questão que você concorde comigo nisso — quase ninguém concorda — mas queria pelo menos que você entendesse o que eu penso.”

Davi estava, certamente, interessado, e o Sr. João continuou: “Provavelmente Provérbios 26 não esteja descrevendo alguém que conta uma mentira por brincadeira, só para criar uma surpresa, e logo depois revela a sua mentira. Eu acho que o texto descreve uma pessoa que realmente deseja enganar o seu próximo, mas quando vê que não deu certo, diz que era apenas brincadeira. Então já queria deixar isto claro, de início: não creio que, com sua brincadeira hoje de manhã, você poderia ser descrito como o louco que solta faíscas. Certo?”

Davi sorriu espontaneamente — ele realmente não tinha ficado ofendido. Mas a curiosidade estava aumentando. “Mas tem mais coisa aí, né?”

“É”, continuou Sr. João. “Aquele versículo de Provérbios me fez pensar, anos atrás, sobre o mal que uma mentira pode causar. Como você sabe, o Senhor Jesus disse em João cap. 8 que Satanás é mentiroso, e pai da mentira. E eu não gostaria de participar de nada que me fizesse parecer um filho dele, entende? Cada vez que eu conto uma mentira, mesmo que seja em brincadeira, estou lançando uma pequena semente de dúvida no coração do meu próximo. A próxima vez, ele pode pensar: ‘Será que ele está mentindo de novo?’ Eu gostaria de ter cem por cento da confiança daqueles que convivem comigo — queria que eles nunca, nem em sonho, pensassem que eu poderia estar mentindo, nem em brincadeira. E já que consigo brincar e preparar surpresas sem usar a mentira, por que arriscar?”

Continuaram alguns passos em silêncio. Sr. João tinha dito o que queria dizer, e não era do tipo que fica insistindo. Davi, por sua vez, estava tentando absorver aquilo tudo.

Finalmente ele disse: “É, faz sentido o que o senhor disse. Não sei se concordo em tudo, mas prometo que vô pensá mais sobre isso”.

“Tranquilo”, respondeu o Sr. João. “Bem, é aqui que nos separamos, então boa noite, e que Deus lhes acompanhe até nos encontrarmos de novo.”

Apertando a mão do Davi, acrescentou: “Sobre a Claudineia, Davi, creio que Deus respondeu minhas orações. Eu sei do seu desejo de servir a Deus, e orei muito para que Deus não permitisse que você fosse enredado por uma moça carnal. Poderia lhe prejudicar pelo resto da vida. Mas fiquei muito contente com o pouco que conheci da Claudineia. Já considero ela como a filha que nunca vi crescer”.

Davi pensou em falar sobre a dúvida que ele e sua namorada tiveram, mas o Sr. João já estava se despedindo do seu tio, visivelmente emocionado. “E afinal de contas”, ele pensou, “Eu já sei que ela não é filha dele, intão é melhor esquecê isso”.

O Sr. João olhou para as estrelas e disse, ao se afastar: “Quem sabe um dia eu ainda encontro minha Totoizinha.”

Os dois permaneceram em silêncio enquanto ele se afastava, cabisbaixo. Se pudessem ler os pensamentos um do outro, descobririam que estavam pensando a mesma coisa: “Vamos continuar orando por você, irmão”.

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