26. Zênite

23. Walther P.38

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



“Pai, que que tá acontecêno?”

Sr. João olhou em torno da mesa. A voz de Claudineia tremia, e o semblante dela estava preocupado. Aliás, a preocupação era visível nos olhos de todos eles. Sr. João imaginou as dúvidas que poderiam estar passando pelas mentes deles — mas ele não sabia se era possível contar todos os detalhes ali, na frente de Rita.

Olhando para ela, disse: “Rita, não sei se você já se recuperou daquele trauma. Você quer explicar pra todos o que aconteceu?”

A pobre mulher estava se recuperando do susto, mas conseguiu sorrir — um sorriso fraco e assustado, mas sincero. “Gente, desculpe pela minha reação. Tive um grande trauma vinte anos atrás, e um homem salvou minha vida. Eu era cega na época, e nunca soube o seu nome verdadeiro. Meu pai o chamava de Walther. Entre muitas coisas que esse homem me disse, o que mais me marcou foi essa frase: ‘Creio, logo existo’. Hoje, quando ouvi o Davi repetindo estas palavras, todas aquelas lembranças voltaram à minha mente, e eu tive certeza que o João era o Walther!”

“Então você é a filha do oficial que deu a pistola de presente pro seu João?” perguntou Davi, lembrando da história que fora mencionada de passagem algumas semanas antes (veja cap. 9).

“Sim”, ela respondeu. “E é por causa da arma que a gente chamava seu sogro de ‘Walther’. A pistola era uma Walther P.38 da época da guerra, que pertencera a um tio do meu pai que lutara contra os nazistas. Para colecionadores de arma, valia muito dinheiro. Quando meu pai quis recompensar o João por salvar minha vida, ele insistiu que queria permanecer anônimo — não aceitou ser entrevistado pelos jornais, e nem queria receber nada do meu pai. Com muito custo meu pai o convenceu a receber a arma de presente, argumentando que, numa hora de necessidade, seria fácil vendê-la por uma boa quantia em dinheiro. E por causa dessa história toda, meu pai, meio de brincadeira, começou a chamar ele carinhosamente de Walther.”

“E essa história do ‘Creio, logo existo’ — fiquei curiosa”, disse Claudineia. A incerteza sumira dos seus olhos — só restava, mesmo, a curiosidade.

“É uma história interessante, Claudineia. Eu tive sérios problemas emocionais como consequência daquele episódio. O que aconteceu foi o seguinte: um dia fui no banco onde seu pai trabalhava como segurança, e bem naquele dia um bandido invadiu a agência. Ele pegou eu e outra moça como reféns, e ameaçou nos matar. Ele gritava muito, as mãos dele tremiam, e ele suava demais, apesar do ar condicionado. Eu tive certeza que ia morrer, e pedi a Deus que Ele me levasse sem sofrimento. Seu pai estava muito calmo, dialogando com o bandido, e acho até que ele ia convencê-lo a se entregar. Só que aí a polícia tentou forçar a entrada na agência — mas se atrapalharam todos, e só assustaram todo mundo. Na confusão, o bandido se apavorou, atirou na moça ao meu lado e virou a arma para atirar em mim. Foi nessa hora que seu pai atirou na mão do bandido, antes que ele pudesse puxar o gatilho, e salvou minha vida. A outra moça não morreu, mas ficou muitos dias na UTI. Eu escapei ilesa, mas tive sérios problemas psicológicos.”

Claudineia apertou a mão do Sr. João, orgulhosa do pai que conhecera poucos dias atrás, mas que amara a vida toda. Rita continuou a história.

“Eu já era salva na época, mas nas semanas seguintes comecei a duvidar da minha salvação, porque eu estava passando por tudo aquilo que sempre critiquei nos outros! Sempre achei que um salvo não podia ter medo, e eu estava com síndrome do pânico. Achava que um salvo não podia ficar deprimido, e eu estava em profunda depressão. Foi aí que seu pai salvou minha vida pela segunda vez. A pedido do meu pai ele me visitou, mais ou menos quinze dias após o incidente. Falou muito sobre a fé, e insistiu comigo que salvação não depende da quantidade de fé que temos, ou da qualidade dela, mas sim, da Pessoa em quem depositamos nossa fé. Uma fé muito forte num ‘santo’ não pode salvar ninguém — mas uma fé no Senhor Jesus Cristo, ainda que seja uma fé fraca, salva por toda a eternidade. Ele me ajudou a não pensar nos meus sentimentos, mas sim na Pessoa em quem eu cria. Foi realmente uma maravilha.”

Olhando para Cláudia, ela continuou: “Naqueles dias de tanta confusão emocional na minha vida, eu não tinha certeza do que eu sentia por ele. Estava profundamente grata, é claro, mas comecei a pensar que talvez houvesse algo a mais. Só que ele nunca me deixou aproximar-se dele, e nem o nome dele ele me contou. Lembro como se fosse hoje ele dizendo: ‘Não importa meu nome, minha profissão, minha conta bancária — importa a minha fé. Eu creio em Deus, e é só isso que importa. E é assim com você também: se você verdadeiramente crê no Senhor Jesus, você está salva — só isso importa’. Lembra?” ela disse, olhando para Sr. João com um sorriso de gratidão.

“Sim, lembro”, ele respondeu. “Depois perdi contato com vocês, e nem sabia que você tinha voltado a enxergar.”

“Meus pais mudaram para o Sul, e lá eu consegui um transplante de córnea e recobrei a vista. A mudança de ambiente também me ajudou a recuperar a confiança e tranquilidade, e esqueci do episódio. Aliás, me forcei a não lembrar dele, porque lá no fundo ainda tinha medo de qual seria minha reação se confrontasse todos os fatos. Mas hoje, quando ouvi aquela frase novamente, imediatamente lembrei do Walther.”

“Eu te reconheci assim que você chegou, mas não falei nada pois não sabia como estava a sua cabeça. Eu lembro de como você sofreu naquela ocasião, e sei que alguns traumas podem acompanhar alguém por muitas décadas. Que bom que você está bem.”

Ele permitiu que seu olhar passasse por cada um que estava na mesa, enquanto continuou falando: “Algumas pessoas não entendem como é terrível sofrer com alguma fobia, ou com a depressão. Nunca tendo passado por uma situação dessas, pensam que um cristão nunca vai sofrer desse tipo de problema — ou, se sofrer, é porque pecou contra Deus. Não percebem que o julgamento e falta de compreensão deles dificulta ainda mais a situação daqueles que sofrem. É uma pena!”

Abaixando um pouco o olhar (e a voz), ele concluiu: “Quando vejo alguém sofrendo na mente, sinto ainda mais pena e compaixão dele do que se sofresse no corpo, pois só quem esteve nesse poço sabe quão fundo ele é!”

Naquela hora Cláudia entendeu, surpresa, que ele falava da própria experiência dele. Era estranho — ele era a última pessoa no mundo que ela achava que teria sofrido com depressão. Ele parecia sempre tão seguro, tão tranquilo … “Mas eu também aprendi a esconder meus piores traumas”, ela pensou; “Coitado; ele deve ter sofrido muito mais do que eu imaginava”.

Enquanto todos pensavam na história passada da Rita, e nas palavras do Sr. João, ela teve vontade de segurar a mão dele, para demonstrar que entendia a sua dor — mas não teve coragem. Estavam ainda sepultando os últimos vinte e cinco anos, e convinha andar com passos lentos. Limitou-se a apresentar uma oração silenciosa ao Deus que ela conhecera pessoalmente dois dias atrás.

Ao terminar sua breve oração, os olhares deles se encontraram. Foi como o primeiro raio do Sol espiando por cima do canto da Terra, que avisa que o dia está nascendo. Sem trovão ou relâmpago, sem alarde, quando a maioria ainda dorme, o penhor dizia que logo vinha o dia. Ninguém percebeu, mas ele entendeu que ela sabia da fraqueza da sua alma, e se compadecia dele. E ambos agradeceram a Deus mais uma vez por tê-los abençoado tanto.


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