26. Zênite

19. Soberania

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



Quando o ônibus interestadual estacionou na Rodoviária, Claudineia desceu correndo, e abraçou seu namorado e seu pai num abraço só. “Ai, que saudade!”, ela exclamou, sem se preocupar com as pessoas ao seu redor na rodoviária; “Senti muito a falta de vocês dois!”

“Nós também”, responderam os dois, quase em uníssono.

“E minha mãe, pai? Alguma novidade?”

“Infelizmente, não”, respondeu Sr. João, enquanto caminhavam para o estacionamento. Davi levava a mala da namorada numa mão, enquanto ela caminhava de mãos dadas com os dois. Estavam todos contentes pelo reencontro, mas a alegria estava misturada com preocupação e tristeza pela falta de conhecimento do paradeiro de Cláudia.

Claudineia, que costumava falar sem parar quando estava nervosa (e, a bem da verdade, quando não estava também!), conversava enquanto caminhavam: “Pai, achei impressionante o jeito como o senhor encontrô minha mãe enquanto entregava folhetos. Eu pesquisei e descobri que aqui tem mais de cinco mil pizzarias. É só fazê as contas. O senhor entrega folhetos uma vez por semana, e visitava mais ou menos umas cinco pizzarias cada vez. Qué dizê, o senhor levaria mil semanas — mais de dezenove anos — pra visitá todas elas. E em um mês o senhor já encontrô minha mãe! É impressionante como Deus guiô o senhor até ela. Eu sabia da soberania de Deus, mas só na teoria; agora eu vi como Ele controla todas as coisas!”

Sr. João, falando mais pausadamente, concordou plenamente com ela: “Sim, filha, as chances eram minúsculas, mas quando Deus está no controle tudo fica tão fácil!”

“Então, pai, é por isso que eu mandei aquela mensagem pro Davi ontem, na rodoviária, falano que eu tenho certeza que a gente vai encontrá ela. Tudo é possível pra Deus. A gente vai saí por aí procurano ela, e eu tenho fé que essa semana ainda a gente vai conseguí. Com certeza!”

O olhar desafiador e confiante dela naquele momento combinava perfeitamente com as palavras que ela acabara de pronunciar. Mas seu pai precisou discordar: “Infelizmente não é bem assim, filha. Eu creio que, se Deus quiser que a gente encontre ela, realmente vai ser fácil. Mas a questão é: será que a vontade de Deus, nesse momento, é essa?”

“Mas pai, Ele não ama a gente? Ele não qué o nosso bem?”

“Com certeza, minha filha. Ele te ama com um amor mais perfeito do que eu ou o Davi conseguimos te amar. Mas o amor dEle por cada um de nós é tão perfeito que Ele não faz sempre o que nós gostaríamos que Ele fizesse, mas Ele faz sempre o que será melhor para nós!”

“Mas não é a mesma coisa, pai? Se a gente é salvo a gente qué agradá a Deus, e tem o Espírito Santo habitano em nós. Então o que eu quero não vai sê sempre o que é melhor pra mim, espiritualmente?”

“Deveria ser, minha filha; deveria ser. Mas infelizmente nós também temos a carne, e muitas vezes ela se manifesta até na hora de orarmos a Deus. E além disso, o problema não é só a carne — tem também a questão do nosso entendimento. A gente só vê o presente, e só vê as coisas do nosso ponto de vista. Deus, porém, vê o futuro mais nitidamente do que nós vemos o presente, e Ele sabe como uma ação presente vai influenciar o futuro — não só o futuro de quem está pedindo a Ele, mas o futuro de todos envolvidos naquela situação.”

“Pense no caso da sua mãe”, ele continuou. “O que eu mais quero agora é encontrá-la, e poder ser de alguma ajuda no crescimento espiritual dela. Mas quem sabe existam outras pessoas mais indicadas para ajudá-la do que eu?”

“Mas pai”, Claudineia interrompeu, com a convicção que só uma filha tem; “Quem poderia sê mais indicado do que o senhor? O senhor ama ela, e tem mais sabedoria do que qualquer pessoa que eu já conheci! Não é, Davi?”

Davi, que estava acompanhando com interesse a conversa, teve prazer em concordar. “Com certeza, meu bem. Seu pai é um Manual da Bíblia ambulante!”

Sr. João sorriu, satisfeito com o elogio, mesmo reconhecendo que era exagerado. Respondeu: “Bem, exageros à parte, a questão é que para ajudar alguém é preciso mais do que sabedoria — é preciso também haver confiança e respeito mútuos. Talvez, devido a tudo que aconteceu, sua mãe poderia ficar um pouco acanhada na minha presença, e talvez uma pessoa com menos conhecimento da Bíblia, mas com mais liberdade com ela, poderia ser muito mais útil do que eu!”

Interromperam a conversa um pouco, enquanto Davi pagava o estacionamento. Sr. João e Claudineia foram na frente, para guardar a mala no carro. Esperaram Davi voltar antes de retomar a conversa.

“O que eu estava tentando dizer”, Sr. João continuou, “É que é só Deus quem sabe o que é melhor pra todos nós agora. Na minha visão limitada das coisas, parece que o melhor pra todos nós é que a gente encontre sua mãe o mais rápido possível, para todos nós servirmos a Deus juntos. Mas talvez Deus esteja vendo alguma coisa que a gente não vê, e sabe de algo que a gente ainda não descobriu.”

Enquanto Davi dirigia, ele continuou: “Quando pensamos sobre a soberania de Deus, eu gosto de pensar no exemplo de pais e filhos aqui na Terra. Eu não tive o privilégio de ver você crescer, mas tenho certeza que houve várias situações em que o Sr. José e a D. Maria levaram você ao médico ou ao dentista. Certamente você não desejava ir, e talvez até chorou, pedindo pra não ir. Mas eles insistiram, e te levaram. Por quê? Porque não te amavam?”

“Entendi”, ela respondeu; “Eles me amavam demais pra fazerem a minha vontade!”

“Exatamente, filha. Fizeram o que seria melhor pra você, não o que seria mais agradável. A Bíblia diz que o Senhor corrige a quem ama, e está repleta de exemplos de servos e servas que foram fieis ao Senhor, mas não receberam o que queriam receber. José, o mais obediente dos filhos de Jacó, passou treze anos sofrendo no Egito, pra só depois entender que Deus preparou aquilo para a salvação de toda a família dele [Gn 45:7]. Durante todo aquele tempo — seja como escravo na casa de Potifar, seja com os pés presos por grilhões na prisão [Sl 105:18] — ele não soube por que tudo aquilo estava acontecendo. Também fico impressionado com a confiança que Jó teve em Deus, a ponto de afirmar: Ainda que Ele me mate, nEle esperarei [Jó 13:15]. Ele estava sofrendo terrivelmente, mas confiava ainda no amor e na soberania de Deus. E tem muitos outros exemplos que mostram a mesma verdade: a soberania de Deus não está a serviço da nossa vontade, e se nós realmente amamos o Senhor, vamos orar como orou nosso amado Salvador: Não seja feita a Minha vontade, mas a Tua!”

“Tudo isso faz sentido, irmão”, interrompeu Davi; “Mas o Senhor Jesus não disse que tudo que pedirmos em Seu nome será feito pelo Pai?”

“Sim, Ele disse isso mais do que uma vez. E, à primeira vista, isso parece contradizer o ensino da Bíblia sobre a soberania de Deus. Se Deus fará tudo aquilo que eu pedir, independentemente da vontade dEle, então o soberano sou eu, e não Ele! Mas se você olhar o contexto dessas referências, você verá que essa promessa do Senhor está relacionada à nossa submissão a Deus e ao nosso entendimento da vontade dEle. O ensino do Senhor Jesus não é que Deus promete fazer tudo o que nós pedirmos, como se Ele fosse o nosso servo, mas que Ele está sempre disposto a agir a nosso favor, como o Pai amoroso que Ele é. Ele nunca fará algo para nos prejudicar, mas sempre agirá para o nosso bem. Só que Ele é onisciente, nós não somos, e muito vezes Ele não poderá nos dar o que pedimos, pois seria prejuízo para nós e para a obra dEle de modo geral.”

Houve um breve silêncio, até que Claudineia falou: “Então não podemos orá para que a gente encontre minha mãe? Porque talvez não seja a vontade dEle”.

Sr. João balançou a cabeça e respondeu: “Eu diria que podemos orar por isso, sim; só não podemos ter certeza se Ele vai nos conceder essa petição. Devemos entender que talvez Ele saiba que seria melhor ela seguir outro caminho, e que é melhor que a vontade dEle seja feita, e não a nossa. Podemos ser honestos e francos com nosso Pai; só não podemos tentar definir o que Ele vai fazer, porque realmente não sabemos!”

“Bom”, disse Claudineia, sorrindo; “Vou ter que começar minhas orações tudo de novo, então!”

E nessa alegria cautelosa — nessa confiança misturada com um pouco de receio — entregaram seu caminho ao Senhor.

Não poderiam imaginar que, naquele exato momento, passavam em frente a uma casa onde Cláudia, de joelhos no seu quarto, orava para que Deus abençoasse a vida de João, Claudineia e Davi, e permitisse a ela seguir o seu próprio caminho servindo a Deus, sem ser um peso para eles.

Dois pedidos opostos, ambos vindo de filhos queridos pelo Pai. Só Deus saberia como agir numa situação dessas, para o bem espiritual de todos eles.

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