26. Zênite

18. Revelações

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



No dia seguinte, faltando um minuto para o horário de visita, Sr. João chegou ao hospital, ansioso. Ao se aproximar da porta, ouviu alguém chamando-o, e virou-se para ver a mulher que fora na sua casa alguns dias antes (veja cap. 14).

Seguindo seus instintos, perguntou: “A senhora deve ser a Márcia?”

“Isso. A Cláudia recebeu alta hoje, e me pediu pra ficar aqui te esperano e te entregá essa carta.”

Sem mais rodeios, entregou um envelope lacrado para ele, e rapidamente foi embora.

Sr. João ficou parado, sem saber bem o que fazer. Por fim, entrou no hospital, sentou numa das cadeiras na recepção, e abriu rapidamente o envelope. Cláudia escrevera com letra extremamente caprichada, legível e bonita. Logo que começou a ler, ele reparou também que a gramática e a ortografia estavam impecáveis. Tudo indicava que a carta não havia sido escrita às pressas, mas com calma e capricho.

Começou a ler:

Querido João,

Não sei por onde começar. São nove horas da manhã, e depois do almoço deverei receber alta. Insisti para que me liberassem hoje, porque não quero te encontrar.

Não me interprete mal. Tenho uma dívida eterna com você, e sempre serei grata a Deus por ter colocado você na minha vida. Além de tudo que você já fez por mim, você me mostrou o amor de Deus e o poder do Evangelho. Ontem à noite, relembrando a mensagem do folheto e o que você me disse, e lendo a Bíblia, eu recebi a vida eterna. Comecei lendo naquele trecho que você leu pra mim, e quando cheguei no meio do capítulo 12, li aquela profecia sobre o Senhor Jesus, que Ele não iria esmagar a cana quebrada. Eu, que a tempos me sinto a pior pecadora do mundo, uma verdadeira cana quebrada e esmagada que não serve pra nada, percebi que quando o Senhor Jesus morreu Ele estava provando que ama até mesmo a mim. Confessei meus pecados a Ele, e cri de todo o coração nele como meu Salvador.

Uma parte de mim está radiante de felicidade. Mas eu sei que não seria justo me intrometer agora na sua vida, e atrapalhar tudo que você construiu nesses anos. Minha filha se tornou uma mulher linda e sábia, e dentro de pouco tempo se casará com um homem que a ama. Eu não participei de nada na vida dela — não é justo querer participar da alegria dela agora.

Vou-me embora para tentar recomeçar a minha vida. Nunca me esquecerei de você, e só peço que tente esquecer dos meus erros.

Algumas coisas eu posso explicar. Quando conheci o Bigodinho no Posto de Saúde, algumas semanas antes da Claudineia nascer, fiquei impressionado pela coincidência dele ter o mesmo nome que você. Conversamos um pouco, e quando descobri que ele era muito rico, logo caí na tentação da ganância de novo. Na minha ignorância, pensei que poderia me aproveitar do interesse dele para conseguir algum dinheiro sem me envolver demais com ele.

Mas tudo deu errado. Logo descobri que ele era bandido, e comecei a ficar com medo. Tentei me afastar, mas ele me fez ameaças. Acabei prometendo pra ele que logo que me recuperasse do parto, deixaria você e iria para ele. Não tinha a mínima intenção de fazer isso, mas não sabia como me livrar dele sem ter problemas. Ele ameaçou matar nossa filha se eu não ficasse com ele. Escrevia cartas, mandava gente me seguir — foi terrível.

No final, em desespero, fugi. Usei a sua conversão como uma desculpa, porque eu sabia que você era determinado. Se não houvesse uma boa razão para eu fugir, você desconfiaria que alguma coisa estava errada, e não descansaria até descobrir o que era. Sai de casa aquela noite, procurei o Bigodinho, e disse que precisava de dinheiro para ir ver minha mãe que estava morrendo. Além de mentir pra ele, também roubei um anel de ouro da mãe dele.

Como eu fui idiota! Fugi para o Vale Verde, e menti de novo pros meus pais (Sr. José e D. Maria — sei que não são meus pais de verdade, mas os considero muito). Uma mentira puxava outra, e fui me envolvendo cada vez mais. Aproveitei a coincidência entre o seu nome e o do Bigodinho, e disse pra eles que você era o traficante que ameaçava minha filha (me perdoe!).

Quase dois anos depois aconteceu o inevitável — o Bigodinho me encontrou lá no Vale Verde. Naquela tarde horrível eu tinha ficado sozinha em casa com a Isabel, que não entendia nada, coitada. Ele e um sobrinho dele, Pixote, chegaram de repente. Ele estava possuído de raiva por eu ter mentido pra ele. Eu fiquei transtornada de medo, e a Isabel percebeu meu medo e ficou com medo também. Na confusão, ele atirou em mim, mas o tiro errou e acertou na Isabel. Ele ia atirar de novo e matar nós duas, mas o Pixote teve a ideia de me incriminar pela morte dela, e fazer eu sofrer de outra forma. Percebendo que alguns vizinhos tinham ouvido o barulho do tiro, o Bigodinho achou a ideia boa, e me disse que se eu não assumisse a autoria do crime ele voltaria para me matar. Ele e o Pixote deixaram a arma para trás e fugiram pelos fundos.

Nunca mais vi eles. De uma forma estranha, achei que eu estava tendo a oportunidade de me redimir dos meus erros. Até gostei de assumir a culpa pelo assassinato dela, e fui para a prisão sabendo que minha filhinha estava em boas mãos.

Mas como foram terríveis os próximos anos. Acho que não teve um dia que eu não me arrependia de ter abandonado você, e de ter deixado minha filha crescer sem mãe. Por outro lado, eu nunca fui uma boa mãe, então talvez foi melhor para ela.

Passei anos e anos na certeza de que eu não tinha mais perdão, e que deveria sofrer sozinha. Agora, pela graça de Deus e pela compaixão que você mostrou pra mim, descobri que a morte do Senhor Jesus é suficiente para me salvar. Glória a Deus por isso.

Estarei orando pelo casamento da nossa filha, e para que você seja feliz com ela e nossos netinhos. Deus já me deu mais do que eu merecia — agora vou embora para não atrapalhar a felicidade de vocês.

Cometi muitos erros — mas o maior deles foi dar mais valor ao dinheiro do que ao amor puro e verdadeiro que tínhamos. Eu tinha um tesouro nas mãos, e querendo ganhar o que não vale nada, perdi tudo que tinha.

Sei que você me perdoou, e te admiro mais ainda por isso. Me perdoe também por ser fraca agora, e fugir. Mas é o que preciso fazer.

Um beijo.

Sr. João terminou a leitura da carta chorando copiosamente — um choro onde alegria, alívio, tristeza e desespero se misturavam e confundiam. Que maravilha que Cláudia havia crido no Senhor Jesus e nascido de novo. Mas por que ela fugira? Ah, Cláudia — continuava fraca e corajosa como quando a conhecera! Ele precisava encontrá-la — mas como? E onde?

Sentado na recepção do hospital, alheio aos olhares de curiosidade disfarçada dos que estavam próximos, ele abaixou a cabeça e orou silenciosamente a Deus, pedindo orientação e forças. Seus pensamentos estavam confusos e ele não sabia muito bem o que pedir — apenas se colocou nas mãos de Deus e pediu que Ele o guiasse.

Depois pegou seu celular e ligou para sua querida filha — ela precisava saber de tudo que estava acontecendo.

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Longe dali, Cláudia saiu do apartamento em cima da pizzaria e virou a chave pela última vez. Márcia voltaria depois para pegar o resto das suas coisas, mas ela tinha pressa de se ausentar dali. Ela sabia que seu marido viria ali procurá-la, e ela estava decidida a não se encontrar com ele.

Limpando uma lágrima teimosa, andou o mais rápido que conseguia pela calçada em direção ao metrô. Não dava para andar muito rápido pois a perna ainda doía muito, mas ela não iria desistir agora. Passaria uns dias na casa da Márcia, e lá resolveria o que fazer da vida.

Espiritualmente ainda era um bebê recém-nascido, mas já se manifestava nela o instinto mais básico do cristão — o desejo de orar! “Senhor”, ela murmurou enquanto andava, “Me ajuda! Não sei o que fazer, e nem sei o que quero! Mas agora sou Tua, e quero aprender a ser obediente a Ti”.

“Dá licença”, ela ouviu alguém dizer, “Não foi você que eu atropelei semana passada?”

Ela abriu os olhos assustada, e viu um casal mais ou menos da sua idade parado ao seu lado. O marido continuou: “Foi logo ali na frente, quando eu dirigia o ônibus. Você saiu ...”

Cláudia começou a chorar novamente, assustada com a incrível coincidência. A mulher do motorista abraçou-a, e lhe disse: “Minha filha, a gente táva orando por você. Naquele dia meu marido não descobriu nada sobre você, nem seu nome, mas quando chegou em casa e me contou tudo, nós oramos para que Deus cuidasse de você. Hoje é a folga do meu marido, e a gente ia visitá alguns hospitais aqui perto pra tentá te encontrá.”

O marido continuou: “Eu já devia tê me acostumado com a maneira maravilhosa como Deus age na nossa vida, mas sempre me espanto com isso. Numa cidade desse tamanho, qual é a chance de nós te encontrá assim, por acaso, no meio da rua? Só Deus mesmo podia fazê isso. Você crê em Deus, filha?”

Ainda abraçada à esposa dele, ela respondeu: “No dia do acidente eu tava fugindo de Deus, mas ontem eu cri no Senhor Jesus e recebi Ele como meu Salvador. Eu tava orando a Deus quando vocês me encontraram, pedindo que Ele me guiasse. Só não imaginava que Ele ia me respondê tão rápido!”



Quando Cláudia contou que estava procurando um lugar para ficar (não fez nenhuma menção do Sr. João), o casal insistiu com ela para que fosse com eles. Ela acabou concordando em ficar com eles somente um ou dois dias, até achar algum lugar para morar. Seria melhor com esses desconhecidos irmãos, do que com a amiga que conhecera no mundo. Depois ela ligaria para a Márcia e explicaria tudo.

Dirigindo-se à casa do piedoso casal, apoiada no braço da sua nova irmã em Cristo, Cláudia estava ainda mais confusa do que antes. Mas já começava a aprender sobre o cuidado constante de Deus pelos Seus. Ela ainda não conhecia as palavras de Davi no Salmo 139, mas teria se identificado imediatamente com ele quando escreveu: “Tu sabes o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento. Cercas o meu andar e o meu deitar; e conheces todos os meus caminhos … Tu me cercaste por detrás e por diante; e puseste sobre mim a Tua mão!”

Tinha acabado de fugir do único homem em quem ela confiava, e achava que nunca mais veria sua filha. Não tinha emprego, nem casa, nem rumo na vida. Mas pela primeira vez em muitos anos, sentia-se em paz e segura, apesar da tristeza e da dor. Terminou o primeiro dia da sua nova vida orando a Deus, agradecendo pela salvação, e pedindo que Ele a ajudasse a começar uma nova vida.

Ela era muito nova ainda na sua fé para entender que Deus tem os Seus próprios planos para os Seus filhos, e que estes são sempre melhores do que os nossos tolos e confusos projetos!

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