26. Zênite

14. Não julgue!

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



Naquela terça-feira à noite, a conversa na casa do Sr. João girava em torno dos planos de casamento de Davi e Claudineia. Conversavam animadamente quando a campainha tocou. Sr. João foi atender, e voltou em seguida acompanhado de uma senhora mais ou menos da idade dele.

Com rosto sério, mas um leve brilho de esperança nos olhos, ele disse: “Gente, esta senhora diz que tem um recado para nós … da sua mãe, filha!”

Todos estavam imediatamente alertas, e Claudineia sentiu o coração acelerar. A mulher tinha aparência bem rude, apesar de estar vestida com sobriedade, e estava nitidamente desconfortável ali. Começou a falar rapidamente:

“Claudineia, sua mãe mandô dizê prá você não julgá ela pelas aparência. Ela ama você demais (eu sô testemunha disso, pode crê), mas até agora nada deu certo pra ela. Eu posso garantí que ela nunca matô ninguém, e nem conseguiria matá. E eu tenho que te dá isso”, falou, colocando sobre a mesa um envelope pardo. Pela forma do pacote, era evidente que continha dinheiro.

“Não é pra abri até depois que eu fô embora, beleza? Ela qué que você aceite isso como um presente pro seu casamento com o Davi.”

“Como vocês sabem que eu vô casá?” Claudineia perguntou, curiosa e um pouco assustada também. “Foi minha mãe que mandô aquelas mensagens no celular do Davi? Por que ela não veio aqui falá comigo? Ela sabe que eu tô procurando ela, não sabe? E qual é o perigo que ela falô?”

A mulher sorriu, e olhando para o Sr. João disse, com certo carinho: “Igualzinha a mãe — fala mais que a boca!”

Depois, voltando-se para Claudineia novamente, respondeu: “Olha, não sei nada sobre mensagem de celular e essas coisa! Sobre a Cláudia, não posso falá muito. Só posso dizê que ela mora perto de mim, e tem alguns amigos que tão ajudâno ela contra o Bigodinho e a turma dele! Ela nem sabia que a gen … que alguém ia acabá com ele, entendeu? Mas agora a vida dela vai melhorá! Ah, vai!”

E com um certo olhar de desafio, de quem está acostumada a ser censurada, a estranha visitante virou-se rapidamente e foi embora, sem se despedir.

Olharam um para o outro, confusos. Claudineia abriu a boca para falar, mas fechou de novo. Havia tantos pensamentos e dúvidas passando pela mente dela, coitada!

Sr. João foi fechar a porta. Quando voltou, ficaram todos ainda em silêncio por um pouco até que o Sr. José falou: “Será possível que nós julgamos a Cláudia mal todos esses anos? Será possível que ela é inocente da morte da nossa filhinha?”

D. Maria apertou a mão dele, e respondeu: “Não sei mais o que pensar. Quando a Isabel morreu, eu não sei o que doeu mais: a morte dela, ou a informação de que a Cláudia era a culpada. Desde quando nós chegamos em casa aquele dia e vimos a Isabel sendo colocada numa ambulância e a Cláudia num camburão, eu não consigo pensar direito sobre isso. Acabei aceitando a culpa dela, porque ela disse que foi ela.”

Sr. João estivera observando sua filha durante essa conversa, e de repente sentiu uma necessidade urgente de mudar de assunto. Ele via, por trás do rosto maduro de mulher, o coração pequeno e assustado da sua frágil Totoizinha, que experimentara tantas emoções diferentes nos últimos quatro dias. Deu vontade de pegá-la no colo de novo, como se fosse um bebezinho! Em vez disso, ele disse:

“Vocês não julgaram mal a Cláudia — vocês simplesmente aceitaram o que ela mesma disse! Mas isso me fez pensar sobre essa questão de julgamentos, e principalmente aquele versículo de Mateus 7 onde o Senhor Jesus diz: ‘Não julgueis, para que não sejais julgados’. Parece que todo mundo conhece essas palavras, mas poucas pessoas entendem o que elas querem dizer!”

Sr. José achou boa a ideia de mudar o rumo da conversa, e com um esforço concentrou-se no que o Sr. João havia dito. E acrescentou: “É mesmo, irmão. Tenho percebido que, para muitas pessoas, essas palavras não passam de uma forma de justificar qualquer atitude, qualquer estilo de vida. A pessoa diz que é salva mas vive pior do que um incrédulo, e se alguém ousa questioná-la, a resposta decorada e automática é: ‘Não julgueis!’ Mas não é isso que o Senhor Jesus quis dizer, é?”

“Não, acho que não é, irmão. Realmente não faz sentido pensar que todo mundo é livre para se comportar como bem entende, e que nenhum tipo de comportamento pode ser questionado. Até porque, poucos versículos depois, o Senhor Jesus falou sobre a necessidade de ser cauteloso quanto aos falsos profetas, e disse: ‘Por seus frutos os conhecereis’. Ele deixou claro que espera que os Seus filhos sejam criteriosos e aprendam a discernir entre o bem e o mal. Em II Tessalonicenses 3:6 Paulo exorta os cristãos a se apartarem de todo irmão que anda desordenadamente, e em Romanos 16:17 ele nos manda desviar desse tipo de pessoa. Ora, como poderemos nos apartar e desviar de irmãos desordenados, se não podemos ter uma opinião quando ao comportamento e ao caráter dos outros? Olhando a Bíblia toda, aprendemos que não devemos ser ingênuos, achando que todo mundo tem boas intenções, nem devemos achar que todo tipo de comportamento está certo. Há um padrão de comportamento que Deus espera dos salvos — seja na nossa vida individual, seja na nossa vida coletiva — e nós devemos ter o discernimento para conhecer quando este padrão está sendo praticado, e quando não está! Não só podemos, mas devemos ter uma opinião quanto ao que os outros fazem.”

“Então o que qué dizê esse ‘Não julgueis’, pai?”

“Eu creio que, simplificando um pouco, o Senhor Jesus não está dizendo para não termos uma opinião sobre um ato ou uma pessoa, mas Ele está nos alertando sobre o que fazemos com a nossa opinião, entende? Imagine que seja notório que um irmão traiu sua esposa. É claro que esse irmão errou, e nós estaríamos errados se disséssemos: ‘Bom, eu não vou julgar!’ Ele desobedeceu a Palavra de Deus e desonrou o testemunho de Deus — ele pecou! Mas, o que fazer então? A reação natural seria, figurativamente, sentar na cadeira do juiz e apontar o dedo para ele, como se nós mesmos fôssemos incapazes de errar. Sairíamos falando mal dele para todo mundo, e assim por diante. É isso que não temos autoridade para fazer, principalmente por causa do que lemos nos versículos que seguem aquele de Mateus 7:1 — porque nós também somos pecadores, nós também estamos debaixo de juízo.”

Davi estava prestando atenção, ansioso por entender o assunto: “Então é mais ou menos assim: eu posso avaliá o erro dele, mas eu devo guardá essa avaliação pra mim?”

“Mais ou menos, Davi. Na realidade, penso que o problema não é tanto tornar minha avaliação pública ou não, mas é mais a atitude que eu adoto em relação à pessoa que errou. Imagine que você trabalhe numa empresa, e seu colega de trabalho está dormindo na hora do serviço, sem o patrão saber. Você sabe que ele está errado, e tem todo direito de dizer pra ele que não concorda com a atitude dele; mas você não tem direito de corrigir ele, ou mandá-lo embora, porque você não é o patrão dele — você é um empregado como ele é.”

“Assim na nossa vida aqui na Terra. Todos nós somos réus, e um só é o nosso Juiz. Quando eu vejo meu irmão pecando, eu tenho todo direito de alertá-lo quando ao seu erro. Mas eu não tenho direito de assumir a condição de juiz sobre ele, e querer decidir o que vai acontecer com ele. Deus é quem o julgará.”

Sr. José complementou: “A não ser, irmão, naqueles casos específicos em que Deus dá a alguém aqui na Terra uma autoridade numa esfera limitada: como os presbíteros numa igreja local que às vezes precisam disciplinar alguém, ou os pais em relação aos filhos, por exemplo.”

“Muito bem lembrando, irmão”, Sr. João respondeu.

Davi ainda queria saber mais: “Por exemplo, seu João, aquele irmão que chamô o senhor de hipócrita no domingo; como que fica?”

“Bem, Davi, eu não tenho dúvida que ele estava errado quando agiu assim. Eu posso comparar o comportamento dele com a Palavra de Deus, e chegar à conclusão de que ele pecou. Mas eu não vou ser o juiz dele: não vou sair contando pra todo mundo, não vou exigir que ele venha me pedir desculpas, não vou sugerir aos presbíteros da igreja dele que ele seja disciplinado. Ele errou, mas eu também erro muitas vezes, então não vou julgá-lo.”

“Agora acho que entendi”, disse Claudineia com aquele sorriso cativante e sincero. “Só preciso aprendê a praticar isso!”

“É, minha filha, a prática é sempre o mais difícil! Talvez o que mais pode nos ajudar nessa questão é olhar mais para as nossas próprias falhas. Se eu tivesse uma consciência mais clara do quão fraco eu sou, eu não teria tanta pressa em apontar o dedo para o meu irmão.”

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Enquanto aquele pequeno grupo de cristãos procurava entender melhor a sua própria fraqueza, Cláudia, do outro lado da cidade, enfrentava uma situação bem diferente. Ela estava sozinha no banheiro da pizzaria, olhando a mensagem que acabara de chegar no seu celular:

Minha querida, o Pixote recebeu sua caixinha e mando um recado assim: Tamo quites. Vc segue sua vida que eu sigo a minha.

Ela respirou aliviada. Bigodinho tivera uma rixa pessoal com ela, uma questão de orgulho — mas a questão com o Pixote sempre fora material. Na noite em que ela fugira para o Vale Verde com a pequena Claudineia, ela levara um anel que pegara escondido na casa do traficante. Um anel que, além do valor monetário, possuía um elevado valor sentimental para eles, pois pertencera à mãe do traficante, avó do Pixote. Cláudia imaginara que, se devolvesse o anel, provavelmente Pixote perderia todo interesse nela — e parece que sua ideia havia dado certo.

Agora era esperar para ver se realmente ele esquecia dela. E se isso se concretizasse, então não haveria mais nenhum perigo em procurar João e Claudineia.

Mas ela sabia que não estava pronta ainda — aliás, talvez nunca estaria. Encarar todo o seu passado e reconhecer todos os seus erros exigiria um sacrifício muito grande. Quem gosta de admitir que errou?

Lá dentro da pizzaria o telefone tocou — ela precisava voltar ao serviço. Respirou fundo, guardou o celular, e tentou desligar da sua mente aqueles pensamentos. “Amanhã é outro dia”, ela pensou; “Amanhã é outro dia”

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