26. Zênite

8. Hipócrita

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]




“Então o senhor é hipócrita, irmão!”

Davi não conseguiu disfarçar seu espanto ao ouvir essas palavras. Era Domingo, e estavam todos na casa do Sr. João esperando o almoço. Davi havia saído para comprar um pouco de refrigerante, e ao voltar viu o Sr. João conversando na calçada com um irmão de uma igreja local vizinha. Quando estava a poucos metros deles o visitante, com esse último impropério, virou-se, entrou no seu carro, e partiu. Nem percebeu a chegada do Davi.

“Uai, Seu João, que é isso?”

Sr. João balançou a cabeça com pesar ao responder: “Tem pessoas que não suportam que você discorde delas, meu filho. Eu até tentei explicar …”

“Pai! Davi! Corre aqui!”

Ao ouvir o grito de Claudineia vindo lá de dentro da casa, os dois entraram correndo, preocupados. Claudineia estava em pé no meio da sala, com o celular do Davi na mão, o espanto nitidamente estampado no seu rosto. Seus avós chegaram da cozinha quase na mesma hora que Davi e Sr. João chegaram da rua, e Claudineia disparou a falar, olhando ora para um, ora para outro:

“Eu tava jogando um joguinho aqui no seu celular, e chegô uma mensagem que não tô entendendo nada. Será que é da minha mãe, pai? Mas ela não pode tê o número do nosso celular, pode? Que que tá acontecendo?”

Davi tirou o celular da mão dela, com carinho, e leu em voz alta: “Claudineia, tome cuidado hoje e não saia sozinha. Mas vai dar tudo certo; estou cuidando de você.”

D. Maria sentou-se rapidamente, levando a mão à boca, e com a outra apertou a mão do Sr. José. Davi e Sr. João olharam um para o outro, completamente confusos.

“Estranho …”, respondeu Sr. João. Antes de Davi terminar a leitura da mensagem, ele já havia discretamente trancado a porta atrás de si. Estava preocupado, mas não queria alarmar sua filha. “Bem, vamos orar para que Deus nos ajude. E vou ligar para o delegado. Ele é cliente fiel da minha loja, e tenho bom relacionamento com ele. Creio que não vamos ter problemas.”

Imediatamente após uma breve oração, ele pegou o telefone e discou o número da delegacia. Enquanto esperava para ser atendido, todos conversavam ao mesmo tempo, tentando entender de onde viera a mensagem que Claudineia recebera. Ela achava que só podia ser da sua mãe — mas ninguém conseguia explicar como a Cláudia poderia ter o número do celular do Davi, nem como ela poderia saber dos acontecimentos das últimas horas. Não fazia sentido.


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Na noite anterior, dois telefonemas importantes haviam sido feitos.

No primeiro, a moça que atendeu ouviu uma voz masculina dizendo, rapidamente: “Se o Bigodinho ainda tá procurando a filha do João da papelaria, fala pra ele me encontrá amanhã, meia-noite, na casa do Pepe.” E sem mais explicações, a ligação foi encerrada.

Algum tempo depois, do outro lado da grande metrópole, uma mulher estava quase saindo da pizzaria onde trabalhava quando o telefone do estabelecimento tocou. Ela atendeu, e uma voz conhecida disse: “Meu bem, a gente precisa conversá urgente. Aquele seu problema encontrô sua filha, mas nóis tamo com tudo sob controle. Vem pra cá agora que te conto mais detalhe.”

Com o rosto branco e as mãos tremendo, ela desligou o telefone e saiu rapidamente. Ao contrário do que sempre fazia, naquela noite ela nem se preocupou em ver se alguém a seguia.


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Sr. João desligou o telefone, e informou que o delegado havia se comprometido a enviar uma viatura para fazer a ronda da rua onde Sr. João morava. Haveria policiais passando por lá durante todo o dia e toda a noite. Ele também dissera para o Sr. João que Bigodinho estava sendo caçado, não só pela polícia, mas por duas outras gangues rivais. Havia mais de um ano que ele estava escondido, e o delegado tinha certeza que ele não representava uma ameaça para eles. Mas, por precaução, estava enviando a viatura.

Essa notícia trouxe um certo alívio, mas obviamente era impossível ficar completamente tranquilos. Por outro lado, depois de vinte e cinco anos de separação, havia muito assunto para ser colocado em dia. Sr. José e D. Maria queriam conhecer mais sobre seu genro, e Sr. João e Claudineia tinham assunto para uns seis meses de conversa ininterrupta! E o Davi estava mais do que satisfeito de ficar só ouvindo — fazia tempo que ele não se sentia tão contente.

Assim a tarde passou rapidamente. Depois da reunião, porém, o cansaço da longa viagem do sábado, somado à emoção dos últimos acontecimentos, atingiu Claudineia e seus avós em cheio! Mal acabaram de jantar e já foram deitar, e em poucos minutos pegaram no sono.

Sr. João saiu até o portão para se despedir do Davi, e o jovem lembrou do incidente da manhã: “Irmão, o que o senhô vai fazê sobre aquele irmão que lhe chamô de hipócrita? Se o senhô precisa de uma testemunha, eu tô a disposição.”

“Agradeço, mas não vou fazer nada, não”, respondeu Sr. João, com um sorriso triste nos lábios. “Ele estava me convidando para pregar na igreja onde ele reúne, mas queria que eu falasse sobre um assunto que ele escolheu. O assunto era bom, mas ele só queria me usar para mandar recado para alguém — e eu não posso fazer isso. Ocupar tempo numa reunião é uma responsabilidade muito grande, e se eu for pregar, quero ter certeza de estar pregando seguindo a orientação de Deus, não dos homens. Pedro diz: Se alguém falar, fale segundo as palavras de Deus. Tentei explicar isso pra ele, mas ele disse que eu estava é com medo de defender a verdade, e por isso me chamou de hipócrita. Ele é esquentado, sabe, e já deve ter se arrependido do que falou.”

“Mas o senhô não acha ruim? Não fica chateado?”

Ele respondeu, cauteloso: “É, machuca muito ouvir alguém te acusando assim. Não gostamos de ser corrigidos, nem mesmo quando estamos cem por cento errados; mas quando a repreensão não é merecida, aí fica muito mais difícil. Dependendo da pessoa, eu até tento explicar. Mas dependendo da atitude da pessoa que te ofendeu, explicar não vai resolver nada, então o melhor é esquecer e suportar.”

“É, acho que eu não ia conseguí suportá tanto assim, irmão”, respondeu Davi, com sinceridade.

“Na verdade, eu também não consigo, Davi. Mas Deus nos ajuda”. Ele apontou para o Céu, cheio de estrelas, e continuou: “Amanhã cedo, quando você estiver indo para o serviço, todas essas estrelas continuarão ali, exatamente no mesmo lugar onde estiveram desde que você nasceu. Só que você não vai ver nenhuma delas, porque a luz do Sol brilha tão intensamente que ofusca todas elas! Muitos anos atrás um irmão me disse que o Sol é como se fosse Deus agindo na minha vida, e as estrelas são como as coisas que os outros fazem pra mim. Quando o Sol brilha, todas as outras coisas desaparecem. Confesso que quando ouvi esta ilustração achei um pouco simplória — mas depois passei a apreciar a sabedoria simples daquele velho irmão, que hoje está na glória. Ele não estava falando da natureza do Sol e das estrelas, mas falava daquilo que nós enxergamos daqui da Terra. É uma verdade que tenho tentado praticar — quanto mais eu deixo a graça de Deus agir na minha vida, menos eu me preocupo com as injustiças que sofro.”

Pondo a mão no ombro do seu jovem amigo, ele continuou: “Mas não quero dar a impressão que é fácil. Me perdoe por ser sincero com você, mas creio que devo lhe mostrar toda a minha fraqueza. Eu até tinha esquecido dessa ofensa — fiquei preocupado com aquela mensagem que a Claudineia recebeu, sabe? Mas a verdade é que se não fosse aquilo para desviar meus pensamentos, eu teria ficado extremamente chateado com o que ouvi. Quando alguém me ofende, principalmente quando eu sinto que sou inocente, meu coração se revolta. Então eu entro na presença de Deus e, sem rodeios, confesso a Ele o ódio e a raiva que estou sentindo. Não é algo do qual me orgulho; teria muita vergonha se alguém ouvisse uma dessas orações. Mas não preciso ter vergonha com Deus, porque Ele me conhece melhor do que eu mesmo me conheço. E conforme vou orando a Deus, Ele me faz lembrar de passagens da Bíblia que me ajudam a colocar as coisas em perspectiva, sabe? Se eu lembro que Deus me ama, por que vou preocupar se meu irmão me despreza? Se eu lembro que meu Senhor, perfeito em todos os sentidos da palavra, foi rejeitado, por que vou ficar espantado se eu não for compreendido?”

Olhando novamente para as estrelas, ele concluiu: “Quando o Sol raiar amanhã, não conseguiremos mais ver as estrelas. Quando as pressões da vida começam a me distrair, eu tento entrar na presença de Deus em oração e só sair dali depois que a graça dEle, como o Sol, ofuscou todas as outras coisas. Algumas vezes é difícil — outras vezes é um pouco pior.”

Sorrindo novamente, ele estendeu a mão para o Davi em despedida, e disse: “Espero que isso lhe ajude qualquer hora.”

“Já ajudô, irmão, com certeza! Boa noite.”

Sr. João voltou para dentro da sua casa, onde sua filha (ah, como era bom ter encontrado ela!) e os avós dela dormiam tranquilamente. Apesar da alegria enorme por ter finalmente encontrado sua Totoizinha, seu coração estava triste. E não era por causa do “hipócrita!” que ouvira de manhã — o problema era aquela mensagem no celular do Davi. Por que a Claudineia corria perigo? Será que o traficante, Bigodinho, ainda tinha ódio da Cláudia? Será que ele ainda procurava pela filha dela?

De repente, Sr. João se lembrou de ter notado que, quando todos saíram da loja no sábado à noite, um garoto chamado Nelsinho, que ele conhecia há vários anos, estava se afastando depressa do local — e Nelsinho trabalhava para o traficante. Certamente o garoto deve ter ouvido o que aconteceu lá dentro da loja, e a essas horas o traficante já sabia que a filha da Cláudia havia sido encontrada.

Mas quem teria enviado a mensagem? Será que a Cláudia estava solta, e na companhia do bandido? Isso não fazia sentido — se ela estivesse junto com o traficante, ele não teria mais interesse na criança. Mas então quem poderia ser?

Ele não sabia o que entender da situação — só sabia que o melhor caminho seria orar e deixar tudo nas mãos do Pai eterno, que tudo sabe e tudo vê. Esse era o caminho indicado.

Mas a euforia de ter encontrado sua filha depois de vinte e cinco anos o deixara momentaneamente vulnerável. Ele sentia uma dor física no peito só de pensar que, depois de tanta espera, ele poderia perdê-la novamente.

Decidido, colocou no bolso um pequeno objeto metálico que guardava debaixo do colchão, saiu pela porta dos fundos, e esperou nas sombras até que a viatura policial passou pela sua casa e dobrou a esquina. Depois saiu silenciosamente na direção oposta. Ele não sabia exatamente onde começaria sua busca, mas estava disposto a não desistir até que encontrasse o traficante e resolvesse a situação!

Ah, como é vulnerável o coração que ama demais!

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