26. Zênite

1. Aniversário



Assim que acabou a reunião, Davi e Claudineia se aproximaram do Sr. João, que ainda estava assentado no banco. Ele olhou para o jovem casal com alegria e um pouquinho de orgulho. Fazia tempo que ele observava, animado, o crescimento espiritual do Davi; um jovem muito exigente, com a tendência de ser duro com os outros, mas que era ainda mais duro consigo mesmo, e sempre aceitava ser corrigido e instruído. Esta última qualidade, tão rara na nova geração, dava muitas esperanças ao Sr. João quanto ao futuro espiritual do Davi. Ele investira muito tempo e esforço na educação espiritual desse jovem, e estava contente com os resultados.

Ele não conhecia a moça, mas sabia quem ela era, pois nas últimas semanas Davi não tinha outro assunto a não ser a iminente visita da sua namorada, Claudineia. Sr. João achava interessante pensar nas muitas similaridades entre o casal: ambos tinham a mesma idade, ambos eram salvos e membros ativos de igrejas locais, ambos eram órfãos de pai e mãe. Mas até pela maneira como se aproximavam agora, ele percebeu que a moça era muito mais alerta e irrequieta que seu namorado.

“Seu João, eu queria apresentar a Claudineia, minha namorada”, disse Davi, sem conseguir disfarçar o orgulho na sua voz. A moça era realmente muito bonita, e por um instante, inconscientemente, Sr. João pensou na sua própria esposa, que ele não via há tanto tempo, mas que amara com tanta intensidade.

“Muito prazer”, respondeu Sr. João (ele nunca sabia o que dizer numa hora dessas); “Você é muito famosa por aqui, minha filha”.

A moça também ficou um pouco encabulada, mas riu (uma risada muito espontânea e sincera), e respondeu: “Também já ouvi falar muito do senhor. O Davi gosta muito do senhor”.

Davi, tentando mudar de assunto, disse: “Hoje é aniversário dela, Seu João! Vinte e cinco anos.”

Só Davi percebeu o leve tremor na voz do Sr. João, que respondeu: “É, eu sabia que ela tinha a sua idade; só não sabia” (olhando agora para a moça) “que seu aniversário era hoje.”

Trocaram mais algumas palavras, mas Sr. João estava, de repente, ansioso por partir, e logo se despediu.

Quando o casal caminhava de volta para a casa dos tios do Davi, que o criaram desde a sua infância, Claudineia estranhou o silêncio do seu namorado.

“O que foi, meu bem? Tá calado …”

Ele olhou para ela, pensativo, e respondeu: “Eu tô preocupado com o Seu João. Cê percebeu como ele ficô diferente depois que eu disse que era seu aniversário? Parecia triste, ou preocupado. Sei lá …”

“É, agora que você menciona, percebi sim. Quer passar lá?”

“É … é caminho nosso mesmo, vamo dá uma passadinha rápida lá. Só não vamo demorá, porque falei pros meus tios que ia direto pra casa.”

“É, vamos rapidinho”, respondeu Claudineia, apertando um pouquinho mais a mão que segurava a sua. Ela apreciava essa preocupação que seu namorado tinha com o testemunho dos dois. Quando queriam sair para algum lugar, sempre iam acompanhados de outros irmãos, e no trajeto entre a casa dos tios e o local de reuniões da igreja local procuravam não demorar desnecessariamente. Ela sabia que muitos criticavam o Davi por esse “excesso de caretice”, como falavam; mas ela gostava daquilo.

Encontraram Sr. João sentando na varanda da casa, e ele os recebeu com alegria; o que quer que fosse que o tinha perturbado, parece que já fora resolvido.

“Entrem, entrem. Eu estava olhando as estrelas; que maravilha ver o poder de Deus num Céu estrelado!” disse ele.

Olhando para sua namorada, Davi respondeu: “Ele tem me ensinado um pouco sobre o Universo; é realmente interessante”. Depois, virando para Sr. João, foi logo ao assunto: “Tá tudo bem, irmão? Achei o senhor muito calado lá no salão”.

Sr. João abaixou a cabeça com um sorriso triste nos lábios. “Desculpa, meu filho.” Depois de uma pequena pausa, ergueu os olhos e acrescentou: “Se vocês dois tiverem cinco minutinhos, queria contar um pouco da minha história pra vocês”.

Claudineia, já puxando uma cadeira e sentando, respondeu: “Sou toda ouvidos; o Davi ama muito o senhor, mas parece que não sabe nada sobre a sua vida!”

Sr. João sorriu enquanto Davi também sentava. “Eu é que falo muito pouco sobre mim mesmo, minha filha”. Depois, olhando para ela, disse num outro tom de voz: “Você se importa se eu te chamar de ‘filha’? Sempre chamei o Davi de ‘filho’, e como você é namorada dele …”

Claudineia riu, satisfeita: “Claro que não importo; acho é bom!”

Sr. João riu também, depois ficou sério e pensativo, olhando o chão. Ergueu os olhos para as estrelas por um instante, antes de olhar para Davi. “Meu filho, já lhe contei que a Cláudia, minha esposa, me abandonou do mesmo dia em que eu cri no Senhor Jesus como meu Salvador, não é?”

“Sim”, respondeu Davi. “Ela nunca gostô do senhor ir nas reuniões, e tinha avisado que se o senhor ‘virasse crente’ ela ia embora na hora”.

“É; e ela cumpriu a promessa!” Virando-se para Claudineia, ele continuou: “O que eu nunca contei pro Davi é que, quando ela foi embora, vinte e cinco anos atrás, ela levou nossa filhinha …”

Diante dos olhos marejados do Sr. João, Claudineia lutava para segurar o choro. “Que idade tinha sua filhinha?”, perguntou em voz baixa.

“Quarenta dias”, ele respondeu. Uma lágrima solitária escorreu para o canto do seu olho, e lentamente desceu pela sua face. O brilho da Lua refletiu nela, e por um minuto o jovem casal viu a beleza que a dor pode produzir.

“Eu nunca mais vi minha filha”, continuou ele, a voz embargada. “Escrevi muitas cartas, mas tenho certeza que nunca foram entregues a ela. Tentei ligar, mas nunca me deixavam falar com ela. A mãe dela, ao sair de casa, disse que eu morri pra ela, e que minha filha nunca saberia da minha existência.”

Ele parou um pouco, e pela primeira vez na vida Claudineia não quis interromper o silêncio de alguém. E quase não ouviram ele sussurrar: “Hoje é o aniversário dela; em algum lugar do mundo ela está comemorando os seus vinte e cinco anos hoje, e eu não estou com ela!”

Claudineia sentiu a mão gelada do Davi na sua, e a apertou. Ninguém sabia o que dizer, e (graças a Deus) ninguém disse nada. Ficaram em silêncio pensando no ódio que um ser humano pode ter do Evangelho, e na dor de um pai que não pode ver sua filha crescer.

Finalmente, Claudineia perguntou: “Ela levou sua filha para muito longe?”

Como que acordando dum sonho, Sr. João ergue a cabeça e desatou a falar: “Realmente, não sei. Ela foi criada na região onde você mora, quase mil quilômetros daqui, e de início ela foi para lá. Quando minha filha completou um ano eu ameacei ir até lá para a festa de aniversário, mas ela ficou louca. Disse que estava de mudança, que já tinha trocado o nome da minha filha, que ia contar para ela que eu tinha morrido antes dela nascer, e que se eu tentasse encontrar minha filha eu iria me arrepender. Confesso que fiquei muito tempo sem saber o que fazer, mas por fim entreguei tudo na mão de Deus, e aceitei que Ele tinha me escolhido para viver só para Ele e para o Seu reino. Oro pelas duas todo dia — é o único contato que tenho com elas.”

“Mas o senhor não pode orá pela sua ex-esposa, depois do que ela fez!”, interveio Claudineia. Antes de terminar a frase ela já tinha se arrependido de ter começado, mas aí já era tarde!

Foi Davi quem respondeu: “Eu também pensava assim, meu bem, mas ele explicô pra mim que Deus não vê o casamento como o mundo vê. A Cláudia ainda é considerada por Deus como esposa dele, até que a morte os separe. Por isso ele nunca se aproximô de outra mulher, e por isso ele ainda ora pela conversão dela.”

Enquanto Claudineia pensava nisto, Sr. João disse: “Meus filhos, vou dizer pra vocês o que nunca disse pra ninguém, e sei que vocês vão honrar o meu segredo. Todo mundo pensa que aceitei passivamente o abandono da minha esposa, e que não guardo mágoas dela. É isso que me esforço para transmitir — mas isso não é toda a verdade. No começo eu senti um ódio imenso dentro de mim. Odiei ela por ter tirado de mim minha filhinha, e destruído a minha vida. Odiei ela por muitas outras razões. Mas eu creio num Deus que tudo sabe, tudo vê, e tudo controla. Creio na santidade do casamento, e creio nas instruções da Sua Palavra. A Bíblia diz que devemos perdoar uns aos outros como Deus nos perdoou em Cristo. Então sei que não posso permitir que esse ódio me domine. Começo todo dia pedindo que Deus me dê graça e força para viver mais um dia sem ódio e sem rancor. E Deus, na Sua misericórdia, me ajuda. É só assim que consigo orar por ela.”

Houve mais um pequeno silêncio, e Sr. João completou: “Hoje, o dia do aniversário da minha filhinha — nem sei o nome dela! — é, pra mim, o dia mais difícil do ano. Oro para que, aonde quer que ela esteja, ela possa ter encontrado o Senhor Jesus como Salvador. Assim, pelo menos lá no Céu eu poderei conhecê-la”.

Ficaram mais uns minutos em silêncio, depois se despediram. Claudineia, que sempre sentia necessidade de dizer tanta coisa, estava estranhamente calada. Mas ao dar um abraço apertado de despedida no Sr. João, ela disse, com lágrimas: “Eu dêxo o senhor me chamá de ‘filha’ se o senhor dexá eu te chamá de ‘pai’.”

O sorriso dele foi a resposta que ela queria. “Deus te abençoe, minha filha. Cuida bem desse meu filho, tá?”

O casal seguiu seu caminho, calados e pensativos. Davi, meio poeta, pensava: “Quantas tempestades habitam num coração aparentemente calmo; quantas tristezas e decepções se escondem atrás de um sorriso amigo”. Claudineia, mais prática, estava surpresa com quantas lições o Sr. João tinha transmitido naqueles poucos minutos.

Eles teriam muito que conversar amanhã em relação a isto. Mas por ora, só conseguiam caminhar juntos em silêncio, de mãos dadas, olhando para as estrelas e pedindo que Deus confortasse o irmão João.

Eles nem imaginavam o que Deus estava reservando para eles nos dias vindouros!

Comentários