26. Zênite

13. Medo

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



Ninguém dormiu muito bem aquela noite, e de manhã cedo o sono apertou. Claudineia, que tinha feito o propósito de acompanhar seu pai para a loja todo dia enquanto ela e seus avós não voltassem para o Vale Verde, não conseguiu acordar a tempo naquela manhã. Quando finalmente despertou, assustou-se com o horário, arrumou-se rapidamente, e andou os poucos quarteirões até a loja.

No trajeto, ela pensava nas mudanças que haviam ocorrido na sua vida nos últimos três dias. Era terça-feira de manhã — no sábado, naquele mesmo horário, ela nem sonhava que o Sr. João era seu pai! Como estava sendo maravilhoso aquele tempo na companhia dele, e podendo encontrar-se com Davi todo dia no almoço, e novamente à noite. Pena que, em breve, ela precisaria voltar para casa e separar-se deles novamente. Mas em pouco tempo, se Deus permitisse, ela e Davi pretendiam se casar — aí ela sofreria com saudades dos avós, que a haviam criado como se fosse filha deles.

“Bom”, pensou ela, sempre otimista; “Depois eu penso nisso. Por enquanto, vô aproveitá que todo mundo que eu amo tá aqui junto!”

Com esse pensamento ela entrou na loja e viu seu pai conversando com Nelsinho — ela esquecera que o garoto iria começar a trabalhar para seu pai naquele dia. Os dois pareciam conversar de forma bem séria, mas a conversa acabou assim que seu pai a viu.

“Minha filha”, ele disse, com uma alegria contagiante; “Fiquei com pena de chamar você hoje de manhã!”

Sorrindo, Claudineia disse “Bom dia” para o Nelsinho e abraçou seu pai, respondendo: “Eu nem escutei o senhor saí! Tava cansada mesmo!”

O resto da manhã passou rapidamente, com pai e filha alegremente desfrutando da companhia um do outro. Logo estavam em casa, saboreando o almoço preparado pela D. Maria. Limpando o prato, o Sr. João brincou:

“Vou sentir falta dessa comida caseira quando vocês partirem, D. Maria!”

Sr. José, pondo sua mão sobre a mão da sua neta, aproveitou para avisar sobre os planos deles: “Se o senhor concordar que a gente fique mais uns dias, irmão, eu estava com vontade de ir embora no sábado de manhã, para estar nas reuniões lá no Vale Verde no Domingo. Quer dizer, se não for atrapalhar o senhor!”

“Quanto mais tempo puderem ficar aqui, melhor, irmão, com certeza!” Ele não queria se separar mais da sua filha, mas sabia que eles precisavam voltar para o Norte.

Pensando nisso, ele achou melhor revelar a eles o que havia descoberto aquela manhã. Após uma breve pausa, virou-se para Claudineia e disse: “Hoje de manhã eu conversei com o Nelsinho, que começou a trabalhar comigo. Até antes de ontem ele trabalhava no tráfico de drogas, lembra? Ele esclareceu algumas coisas sobre sua mãe.”

Ele alinhou cuidadosamente os talheres no prato, procurando escolher as palavras. “O Nelsinho disse que, logo que ele se envolveu com esse povo, comentaram com ele sobre o ódio que o traficante tinha da Cláudia. Ninguém falava dela na presença do chefe, mas contaram ao garoto que ela havia conhecido o chefe poucas semanas antes de você nascer, e que ele havia se apaixonado cegamente por ela. Mas pouco tempo depois ela disse que precisava de dinheiro para ir visitar a mãe dela que estaria morrendo — viajou, e nunca mais voltou. Ela disse pra ele que ia pro Sul, mas na realidade foi pro Norte, pro Vale Verde. Quando o traficante finalmente entendeu que ela tinha mentido pra ele e levado o dinheiro dele, parece que o amor se transformou em ódio, e ele jurou que iria persegui-la até o fim do mundo.”

“Mas por que a mãe fez isso, pai?”

Sr. João hesitou, e o Sr. José respondeu: “Ela sempre foi muito gananciosa, filha. Ela queria ficar rica a qualquer custo. A Bíblia avisa que o amor ao dinheiro é a raiz de toda a sorte de males!”

Sr. João concordou. “Acho que o único defeito grave dela realmente era esse desejo enorme de ficar rica. Mas ela mexeu com o tipo de pessoa errada, e nunca mais teve sossego. O Nelsinho disse que o traficante e o Pixote, um sobrinho dele, viajaram muitas vezes à procura dela — ele só conseguia pensar em vingança. Quando chegou a notícia que ela havia sido presa acusada de homicídio, o Bigodinho comemorou muito. Mas com a prisão ele perdeu contato com ela, porque ela foi presa numa Penitenciária controlada por um pessoal que era rival dele. Ninguém mais do bando teve notícias dela até uns seis meses atrás, quando surgiram rumores que a Cláudia estava trabalhando numa pizzaria no outro lado da cidade. A essa altura o traficante já estava tendo que viver escondido porque estava sendo perseguido por seus rivais e pela polícia, mas ele e o Pixote ainda estavam tentando descobrir se essa moça era mesmo a Cláudia. Tinham até colocado gente pra vigiar a pizzaria, pra ver se ela entrava em contato comigo.”

“Puxa, dá até medo pensá nisso!” disse Claudineia.

“Sim, a situação não deixa de ser perigosa. E isso pode explicar (em parte) o medo da sua mãe de entrar em contato conosco. O Bigodinho já não é uma ameaça, mas o Pixote está solto, e sua mãe deve achar que nós estaríamos em perigo se ela fosse encontrada na nossa companhia.”

Houve um pequeno silêncio, até que D. Maria disse, quase como se falasse sozinha: “Ela deve ter vivido com medo esse tempo todo, desde quando saiu daqui vinte e cinco anos atrás!”

Claudineia, coitada, estava confusa. Acostumada a falar e pensar ao mesmo tempo, nestes últimos dias ela se sentia numa montanha-russa de emoções, e sua mente não conseguia processar tudo que estava acontecendo no coração dela. Será que sua mãe era inocente? Será que sua mãe a amava? Será que ela poderia sonhar ainda com seu pai e sua mãe juntos? Será que sua mãe estava em perigo, ou será que ela era um perigo para eles?

Não era só Claudineia — ninguém realmente conseguia definir seus pensamentos. Depois de uns minutos, Davi achou melhor deixar aquele assunto descansar um pouco, e perguntou: “Seu João, como que funciona essa questão do medo pro cristão? Na minha leitura diária hoje eu li I João, e lá diz que no amor não existe medo, ou alguma coisa assim. É errado o cristão sentir medo?”

Sr. João achou bem-vinda aquela mudança, e respondeu: “Bem, nós, os salvos, realmente não temos motivo nenhum para ter medo, pois temos um Deus onipotente e que nos ama — isto é, sabemos, sem sombra de dúvida, que todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus.”

Olhando bem nos olhos do jovem, ele continuou: “Isso é a teoria, e não há nada de errado com ela. Mas na prática, infelizmente, nenhum de nós consegue viver totalmente sem medo. Se confiássemos em Deus sempre, e plenamente, nunca teríamos medo de nada. Mas somos fracos — muito fracos — e uma das formas como essa fraqueza se manifesta é o medo. Medo de altura, medo de lugares fechados, medo da morte, medo do dentista, medo de críticas, medo de falar em público, e por aí vai.”

“Então é normal ter medo, pai?” Claudineia perguntou.

“Sim e não, minha filha. Digo ‘sim’ porque quanto mais eu vivo, mais vou descobrindo que todos nós temos medo. Então é normal porque acontece com todos nós. Mas ao mesmo tempo, digo ‘não’ porque Deus não quer que vivamos com medo, e é possível vencer o medo. Talvez o equilíbrio esteja em reconhecer que o medo faz parte da nossa natureza humana, mas não da nova natureza. Enquanto estamos aqui no mundo precisamos sempre nos esforçar para superar o medo, confiando em Deus cada vez mais. Mas no Céu nunca mais lembraremos deste sentimento que tanto nos atormenta aqui na Terra!”

Sr. José, que ouvia com atenção, concordou: “Também penso assim, irmão. Creio que só um cristão muito arrogante diria que nunca sente medo. Por outro lado, só um cristão muito imaturo vai se entregar ao medo.”

“Muito bem resumido, irmão! Creio que é isso mesmo. Precisamos lembrar que a Bíblia nos exorta, muitas vezes, a não termos medo. Isto prova que estamos sujeitos ao medo (pois a Bíblia não nos exortaria sobre algo que não nos incomoda), mas prova também que não precisamos ser dominados pelo medo. Perto do começo do Salmo 34 o salmista disse que o Senhor o livrou de todos os seus temores. Quer dizer, temos temores, mas Deus pode nos livrar deles.”

“Qué dize então, pai, que todo mundo sente medo — uns de uma coisa, ôtros de ôtra — mas os salvos podem vencê esse medo?”

“Sim, minha filha, creio que é isso mesmo. Mas temos que ser compreensivos uns com os outros, e até conosco mesmos. Quando eu era mais jovem eu pensava que um cristão em comunhão com Deus nunca teria medo. Algum tempo atrás, porém, acordei no meio da noite com um medo inexplicável. Eu não sabia por que estava com medo, e não sabia do que eu tinha medo — mas eu sabia que estava com medo. Andei pela casa vazia, verifiquei todas as portas e janelas, e orei a Deus. Muito. Ele me livrou desse medo, mas essa experiência me ensinou a não desprezar um cristão assustado.”

“Eu tô com medo agora, pai”, disse Claudineia, o rosto preocupado, a voz baixa. “O que vai acontecer com a mãe? A gente vai sê uma família de novo?”

Sr. João segurou a mão dela por cima da mesa, e disse: “Não sei, minha filha. Também estou com medo. Mas Deus está em controle das nossas vidas. Durante vinte e cinco anos eu sonhava encontrar minha Totoizinha, imaginando a sua dedicação a Deus, sua beleza, sua inteligência, e tantas coisas. E depois eu pensava, assustado: ‘E se eu nunca conhecer ela?’ Mas Deus me permitiu conhecer você, e foi muito melhor do que eu sonhava. Com sua mãe é a mesma coisa: a vontade de Deus será feita, e Ele vai nos ajudar a entender a perfeição dessa vontade quando chegar a hora. Somos humanos, então é claro que estamos com medo. Mas somos filhos de Deus, então não precisamos nos curvar ao medo — podemos entregar nosso medo nas mãos de Deus!”

O sorriso sincero de sua filha ao apertar sua mão, com os olhos marejados, foi a melhor resposta que ele recebera em toda a sua vida.

Virando para o Sr. José, que estava sentado ao lado da Claudineia, ele continuou: “O irmão poderia orar agora por nós, para que Deus nos ajude a descansar nEle?”

Oraram, e descansaram. Talvez seria exagero dizer que o medo foi embora — mas todos eles concordariam comigo se eu dissesse que a paz e confiança que inundou os corações deles naquela hora era bem mais forte do que o medo! O medo ainda estava lá — mas agora estava acuado num cantinho do coração, e não mais no centro do palco.

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Do outro lado da cidade, uma mulher aparentando ter cerca de cinquenta anos de idade saiu da pizzaria (que ainda estava fechada ao público — só abriria mais tarde) e caminhou rapidamente pela calçada com uma mochila nas costas. Dobrou algumas esquinas e entrou nas Lojas Americanas pela pequena entrada da Rua José Bonifácio. Desceu as escadas para o piso inferior que dá para a Rua Direita (que fica num nível mais baixo), e aproximou-se da entrada principal da loja. Parou em frente à estante onde havia vários pequenos espelhos à venda, e pelos espelhos certificou-se que não estava sendo seguida. Depois saiu da loja (agora na Rua Direita) e continuou caminhando rapidamente — apenas mais uma pessoa anônima no meio daquela multidão de pedestres — até chegar na pequena praça onde Márcia a esperava.

O trajeto pelas Lojas Americanas era uma de várias opções que ela usava quando precisava se encontrar com a amiga que conhecera na Penitenciária. Em anos passados ela não tivera tanto cuidado, mas fazia uns seis meses que ela percebera que estava sendo seguida, pelo menos algumas vezes, e então começara a tentar despistar seus seguidores.

Márcia estava sentada num banco, com uma sacola de supermercado ao lado dela. Cláudia chegou, pediu licença (como se a não conhecesse), e sentou na outra ponta do banco. Pegou uma sacola de supermercado que estava dentro da mochila (idêntica à sacola que Márcia trouxera), tirou dela uma maçã, e colocou a sacola no banco, bem ao lado da sacola da amiga. Fingiu estar mexendo no celular e comendo a maçã enquanto falava, em voz baixa: “O envelope é pra minha filha, como eu falei na mensagem. E tem uma caixinha também — dá pra dá um jeito de entregá pro Pixote?”

Ela percebeu que a amiga se assustara com esse último pedido, mas continuou olhando para o celular. Depois ergueu os olhos, certificando-se que ninguém estava prestando atenção nelas.

Márcia respondeu: “Se é o que você qué, querida, eu faço — mas cê tem certeza?”

“Tenho.” Ela sentiu uma vontade enorme de abraçar a amiga e chorar, mas naquele lugar não seria possível. Em outra hora, em outro lugar, conversariam melhor. Não convinha ficar muito tempo perto dela em público.

Dois minutos depois ela guardou a sacola da amiga na sua mochila e foi embora, deixando a sacola com as duas encomendas para Márcia levar.

Caminhou lentamente. Estava cansada de viver com medo, mas era o preço que tinha que pagar pelos erros cometidos no passado. Ficou pensando na sua filha, que tinha visto de longe na noite anterior, na lanchonete. Como ela era linda! Bem diferente dela na aparência física —mas deu pra perceber que era irrequieta e ativa como ela. Ela tinha saudades do marido, da filha, e da vida antiga. Mas seria ainda possível reconciliar-se com eles, depois de tanto tempo?

Como sempre, ela se esforçou para tirar esses pensamentos da mente. “Seja forte!” ela dizia para si mesma; “Seja forte!”

E assim, aparentando uma serenidade que não sentia, ela dirigiu-se de volta à pizzaria, onde estava morando. Uma mulher sem rumo, sem felicidade, sem Deus e sem esperança.

Mas naquela mesma hora o nome dela estava sendo apresentado diante de Deus em oração fervorosa e confiante. E isto, prezado leitor, é capaz de mudar qualquer história!

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