26. Zênite

21. União

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]


Cláudia levantou-se, trêmula, uma sacola em cada mão, e saiu sem olhar para onde ia. Desejava ardentemente abraçar sua filha e lhe pedir desculpas por tudo que tinha feito no passado. Mas como vencer a vergonha e o orgulho? Essas duas emoções irmãs — tão diferentes uma da outra, tão companheiras uma da outra — costumam andar juntas; e quando se unem, é quase impossível derrotá-las!

Mal tinha dado dois passos, porém, ouviu a voz de Claudineia dizendo para Davi: “Você não imagina o quanto eu queria encontrá minha mãe, bem!”

“Você não tem mais mágoa dela?”

“Não, nem um pouco.”

Ela parou, de costas para eles, os ouvidos atentos à conversa. A cena pareceria até engraçada para alguém que tivesse tempo para parar e observar: o que fazia aquela mulher de meia-idade em pé no meio do corredor do shopping, segurando duas sacolas, como se tivesse virado uma estátua? Um observador atento, porém, perceberia que o rosto, pálido como neve, demonstrava tantas emoções conflitantes que era impossível identificar o que a mulher realmente sentia. Ela vivia um daqueles momentos que, de vez em quando, acometem cada um de nós — pequenos momentos em que a vida inteira da pessoa parece estar sendo vivida!

Claudineia continuou falando: “Eu passei a vida toda querendo conhecê meu pai e minha mãe. Quando finalmente conheci meu pai, pensei que minha mãe fosse assassina. Isso foi muito difícil, sabe? Só não foi pior porque eu táva ainda naquela euforia de conhecê meu pai, e nem táva raciocinando direito. A alegria de conhecê ele fez eu não pensá muito nela. E tem ôtra coisa — eu percebi desde o começo que ele nunca acreditô que ela tinha matado a Isabel. Lembra como ele falô que era melhor a gente esperá até sabê com certeza o que tinha acontecido?”

“Lembro”, disse Davi. “Fiquei impressionado com a atitude dele.”

Cláudia ouvia atentamente enquanto travava sua luta interior, querendo ir embora e também querendo abraçar sua filha.

“Eu fiquei magoada só alguns dias, mas logo passô. Vendo que meu pai ainda amava ela, fui percebendo que eu também precisava aprendê a perdoá ela. E aquela carta que ela escreveu pro meu pai, no hospital, muda tudo, né?”

“É”, respondeu Davi. “Muda tudo. E eu gosto daquilo que seu pai sempre fala: que a Bíblia manda a gente perdoá os outros como Deus nos perdoou em Cristo.”

“É. Falando nisso, cadê ele? Ele ia encontrá a gente aqui, mas tá demorâno!”

O coração de Cláudia deu um sobressalto — o João estava chegando? “Mas é claro”, ela pensou; “Eu devia ter desconfiado que ele estaria por perto! Eu tenho que í embora logo!”

Mas era tarde demais, pois naquele momento ela ouviu a voz dele respondendo à Claudineia: “Cheguei, minha filha; desculpe o atraso. Faz uns minutinhos que estou aqui do lado, acompanhando a conversa de vocês, e pensando em como seria bom se a nossa família estivesse unida novamente. Tenho orado muito a Deus sobre isso, mas também respeito os sentimentos da sua mãe. Depois de tudo que ela passou, talvez seja difícil pra ela confiar em nós!”

A mente de Cláudia estava a mil por hora! Será que João a teria reconhecido? É quase certo que sim. Então por que ele não dissera para sua filha que ela estava ali? Por que ele não a desmascarava?

“Mais difícil do que pra gente confiar nela, seu João?” perguntou Davi.

“Muito mais, meu filho, muito mais. Pensa bem: faz anos que nós já conhecemos o amor de Deus, e sabemos que Ele é um Deus que tem prazer em perdoar os que verdadeiramente se arrependem. Mas ela está apenas começando a conhecê-lO, e talvez pense que seja impossível que nós possamos amá-la como Deus a ama! Faz anos que ela convive com pessoas malandras, vingativas e egoístas — deve ser difícil pra ela confiar que nós vamos esquecer os últimos vinte e cinco anos, e que nós a amamos com amor sincero.”

“É, não tinha pensado desse lado! Mas o senhor vai continuar procurâno ela, não vai?”

Com aquele sexto sentido que é próprio de algumas mulheres, Cláudia, ainda de costas, sabia que ele olhava para ela, e sabia que ele também travava uma luta interna. E ela entendeu que, apesar de estar falando com Davi e Claudineia, era com ela que ele conversava.

Depois de uma pausa de poucos segundos (que pareceram uma eternidade para Cláudia), ele respondeu: “Meu filho, precisei tomar a decisão mais difícil da minha vida! Deus respondeu minhas orações tão claramente que eu não tenho nenhuma dúvida sobre qual seja a vontade dEle nessa questão. Tenho certeza absoluta, nesse momento, que a vontade dEle é que eu deixe ela em paz. Vou ficar esperando, sempre pronto para recebê-la, mas aguardando o tempo certo — aguardando até Ele acalmar o coração dela, e ela desejar voltar. Ela já sofreu muito nessa vida, e muita gente se aproveitou dela. Eu sei que ela sabe que estou esperando por ela — mas não quero forçá-la a voltar pra casa.”

Foi aquela expressão — “voltar pra casa” — que pôs fim às dúvidas de Cláudia. Ela virou-se para seu marido, sua filha e seu genro. As lágrimas corriam livremente agora, sem qualquer impedimento. Havia mil e uma palavras que ela desejaria falar naquela hora, mas só conseguiu sussurrar: “Eu quero voltar pra casa!”

A alegria no rosto do Sr. João era contagiante. Em silêncio, ele agradeceu a Deus pela Sua misericórdia, enquanto Claudineia, prática e afoita, pulava nos braços da sua mãe. As duas trocaram um abraço eloquente: um abraço que pediu perdão e que falou das saudades de tantos anos; um abraço que chorou de alegria, de remorso, e de alegria de novo; um abraço que recitou mil poemas em silêncio, e prometeu que nunca mais haveria separação; um abraço que só uma mãe e uma filha, separadas há tantos anos, saberiam decifrar!

Uma pequena multidão ao redor deles olhava, curiosa, sem entender nada — mas a pequena família estava alheia a tudo isso. Estavam vivendo o seu momento particular, sozinhos no meio de todo mundo, isolados no meio da multidão.

E, como fiz no encontro entre pai e filha, vou sugerir ao leitor que nos afastemos por um pouco. Há momentos na vida que são preciosos demais para serem compartilhados — e este, certamente, é um deles. Deixemo-los matar a saudade de tantos anos, e mais tarde retomamos o fio da meada!




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