26. Zênite

7. Gratidão

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]




“There is a joy that lies where pearls lie, deep,
Too deep for those who have no heart to weep”
The Caravanserai — EWAN, Dr. E. A. Glasgow: GTP, 1980. Pág. 19.
“Há uma alegria que se esconde com as pérolas no fundo do mar,
Fundo demais para quem nunca aprendeu a chorar”


“Bem, antes de mais nada, vamos agradecer a Deus”, disse o Sr. José. Ainda estavam na loja do Sr. João, que estava fechada. Claudineia e Sr. João não saíam de perto um do outro, e a alegria estampada no rosto deles era contagiante. Sr. João passou o braço em torno dos ombros dela novamente enquanto Sr. José orava a Deus, agradecendo por tudo que acontecera.

Terminando a oração, Sr. José, dirigindo-se ao Sr. João, disse: “Creio que tem uma reunião daqui a pouco, irmão?”

“Isso, daqui a quarenta e cinco minutos. Minha casa fica no caminho para o salão de reuniões, então vamos dar uma passadinha rápida lá, se alguém precisar de alguma coisa, e já seguir pra reunião.”

Claudineia quase entrou em pânico! Quarenta e cinco minutos até começar a reunião, mais uma hora de reunião, mais meia hora para o bate-papo no salão e depois descer para a casa do Sr. João — “Eu não vou conseguir esperar tanto tempo!” ela pensou, quase em desespero! E foi logo perguntando:

“Vô, mas se eu sô filha do meu pai, então eu não sô filha da minha mãe, e nem neta de vocês dois?”

Sr. José sorriu da forma confusa como ela se pronunciou, mas ele entendeu perfeitamente o que ela queria dizer. Com um olhar que continha ternura e tristeza, ele respondeu:

“Minha filha, sua mãe biológica é a Cláudia, e sua mãe de coração é minha filha Isabel. E eu e sua avó criamos as duas como se fossem irmãs, então você é nossa neta duas vezes!” Abraçando-a com carinho, ele concluiu: “Depois da reunião vamos explicar melhor.”

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Cerca de duas horas mais tarde estavam sentados em torno da mesa na cozinha da casa do Sr. João. D. Maria havia se apropriado do fogão e colocara uma panela com água para ferver. Sentou-se à mesa também, e todos olharam para o Sr. José que, dirigindo-se à sua neta, disse:

“Bem, ainda tem alguns detalhes que não entendemos, mas queremos explicar para você e o Davi o que nós sabemos sobre a sua história. Vocês dois devem estar bastante confusos, eu imagino.”

Impulsiva e impetuosa, Claudineia foi logo falando, com um sorriso enorme nos lábios: “Tô sim, vô — mas pra falá a verdade, agora que eu achei meu pai eu nem importo com mais nada!”

Ao lado dela, Davi sorriu — ele amava aquela garota, e a alegria tão sincera dela fazia com que ele se sentisse feliz também. Sem falar no fato de que o Sr. João encontrara sua filha depois de tantos anos. Tudo parecia perfeito — mas muita coisa não fazia sentido para ele.

“Não consigo entender”, ele disse, “como que a Claudineia foi registrada aqui com o nome Cássia Soares Brito, filha do Sr. João e da Cláudia, mas tem outro registro com outro nome e outra mãe!”

Sr. José segurou a mão da sua esposa, e olhando para Claudineia respondeu com voz baixa: “Eu e sua vó temos culpa nisso, filha — espero que consiga nos perdoar. Quando registramos você lá no Vale Verde, obviamente sabíamos que você era filha da Cláudia, mas não sabíamos que você já tinha sido registrada com outro nome. A Cláudia mentiu para nós, e disse que desde que você nascera ela estava fugindo do traficante, escondendo aqui e ali, e nem conseguira registrar você ainda. Deveríamos ter suspeitado disso — como ela teria conseguido viajar de ônibus se ela não tinha nem um documento seu? Mas nós achamos que, para proteger você, seria melhor registrar você como filha da Isabel. Os recortes de jornal que ela trouxe, descrevendo a perversidade desse João, e a carta que parecia indicar que ele queria matar você, nos enganaram.”

“Ela tinha uma carta escrita pelo traficante?” perguntou Sr. João.

“Sim”, respondeu Sr. José. Depois, olhando novamente para o casal jovem, continuou: “Juntando o que nós sabemos com o que o Sr. João nos contou hoje lá na loja, chegamos à conclusão que, poucos meses antes de você nascer, sua mãe conheceu o outro João, o traficante, no Posto de Saúde daqui. Ela chegou do Postinho um dia, depois de uma consulta com a ginecologista, e contou pro seu pai que enquanto ela esperava para ser consultada ela ouviu a enfermeira chamando um tal de João Brito. Sem pensar, ela disse em voz alta que João Brito era o marido dela, justo quando o outro João Brito estava se levantando. Ela contou pro seu pai, depois, que todo mundo lá no Postinho achou graça da situação — e seu pai nunca mais pensou nesse outro João. Mas desde aquele dia sua mãe mudou de comportamento, sabe? Ficou mais distante e nervosa, e parece que sempre tinha dinheiro também. Sabemos que ela era muito gananciosa, então chegamos à conclusão, quando conversávamos lá na loja, que ela aproveitou essa coincidência e começou a se aproximar do traficante. Querendo levar alguma vantagem, entende?”

Olhando novamente para o Sr. João, ele continuou: “Logo que ela chegou no Vale, depois de abandonar o senhor, ela mostrou pra nós uma carta que o traficante escreveu pra ela dizendo que amava ela, e dizendo que se ele não pudesse ficar com ela, ia matar o bebê dela!”

Voltando-se para sua neta mais uma vez, continuou: “Na época nós ficamos muito assustados. Conversando hoje com seu pai, lá na loja, chegamos à conclusão que ela não teve tempo de se envolver muito com esse traficante, porque juntando as datas, ela viajou para o Vale na mesma noite em que abandonou o Sr. João, e só conheceu o bandido uns três meses antes de você nascer. Não sabemos exatamente o que aconteceu; o que sabemos é que ela tinha algum problema com esse bandido, mas não sabemos exatamente o que.”

D. Maria interrompeu, falando com muito sentimento: “Nós ficamos com medo por ela, sabe, mas mil vezes mais por você. Você era tão pequenina e frágil, mas já tinha essa alegria contagiante que você sempre teve. E fui eu que insisti com seu avô, e sugeri que poderíamos registrar você como filha da Isabel. Nunca contamos pra você, mas a Isabel não podia ter filhos, e nem seria capaz de criá-los. Eu tive dificuldades no parto, e ela passou a vida inteira dela numa cama. Ela não sabia de nada, coitada …” Sua voz falhou, e ela escondeu o rosto nas mãos, chorando silenciosamente.

Sr. José esperou ela se recompor um pouco, e continuou onde ela havia parado: “Quando sua avó sugeriu registrar você no nome da Isabel, a Cláudia aceitou na hora. E como moramos numa região bem isolada, foi até fácil. Nós não conhecíamos o Evangelho na época, e nem pensamos que seria errado mentir sobre isso. Levamos você até a cidade e registramos você como nascida em casa, filha de Isabel e de pai desconhecido. A Isabel ficou encantada com você, mesmo sem entender a situação. Por quase dois anos vivemos assim, felizes, escondidos lá no fundo do Vale Verde, longe da violência e do medo. Tínhamos a certeza que havíamos feito a coisa certa. E depois que ocorreu a tragédia [cap. 4, Descobertas], parecia que não tínhamos escolha — cada dia que passava ficava mais difícil contar a verdade pra você. Como nunca descobrimos o que levou a Cláudia a matar nossa filha, foi difícil encarar a situação, e optamos pelo caminho menos dolorido: ficamos quietos, e deixamos você pensar que a Isabel era sua mãe. Desculpe, minha filha, desculpe mesmo!”

As lágrimas corriam livremente pela sua face. Claudineia não conseguia lembrar de ter visto o avô dela chorando antes, e impulsivamente levantou-se, correu para atrás das cadeiras onde o casal estava sentado, e abraçou os dois com tanta força que até doeu: “Não tem o que desculpá, vô. Vocês me criaram com todo o amor do mundo, e sempre vô sê grata a vocês. A única coisa que me entristece hoje, nesse dia tão feliz, é pensá que minha mãe matô uma mulher que era praticamente a irmã dela. Quem faz uma coisa dessas?”

Sr. João interrompeu, com a voz embargada: “Talvez seria melhor esperar até descobrirmos o que realmente aconteceu, minha filha. Sua mãe tinha muitos defeitos, como eu também tenho — mas eu não consigo imaginar ela tendo coragem de matar alguém. Seus avós contaram que nunca foi descoberto porque, nem como, a Isabel morreu. Sua mãe confessou o crime, eu sei. Mas é uma história confusa, e …”

Ele parou de falar — a situação toda era tão delicada, e ele não sabia direito como expressar o que estava no coração dele. Hesitou um pouco, depois mudou completamente de assunto: “Bem, hoje é um dia de gratidão. Deus respondeu a oração que tenho repetido por vinte e cinco anos, todo dia — a não ser naqueles poucos dias em que o Sol nunca chegou a nascer, e a noite durou trinta e seis horas! E hoje, vendo minha Totoizinha” (Claudineia riu por entre as lágrimas — ela já estava apaixonada pelo jeito como o pai dela falava “Totoizinha”) “eu não posso deixar de agradecer a Deus mil vezes pelas misericórdias dEle. Se o senhor permitir, irmão”, disse olhando para o Sr. José, que tinha idade para ser pai dele, “eu queria pedir ao Davi que orasse agora, agradecendo a Deus mais uma vez por esse encontro tão feliz!”

“Claro, irmão; a casa é sua! E é impossível agradecer demais a Deus!”

Davi estava radiante: duas das pessoas que ele mais amava no mundo haviam recebido um presente maravilhoso do Pai das luzes, o Autor de “toda a boa dádiva e todo dom perfeito” (Tg 1:17). A alegria deles não cabia em seus pequenos corações e transbordava, inundando a pequena cozinha onde estavam. Ele nunca tinha sentido tanta facilidade para orar desde a noite em que se convertera, quatro anos atrás.

Atrás deles, a água da panela fervia sem parar, mas ninguém percebeu — seus corações estavam fervendo também!

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