26. Zênite

9. Impaciente!

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]




Sr. João saiu de casa naquele domingo à noite e dirigiu-se diretamente à rua onde ficava a sua loja. Como ele imaginava, Nelsinho estava sentado na pequena praça da esquina, conversando com mais dois rapazes. Ele acenou para o garoto, e esperou que ele se aproximasse.

“Nelsinho, eu preciso falar com o Bigodinho, urgente!”

O desconforto do garoto era nítido. Anos atrás ele frequentara a reunião para crianças que a igreja no Jardim das Flores mantinha, onde o “Tio João” lhe ensinara a Palavra de Deus e lhe pregara o Evangelho. Mesmo tendo trocado aquela infância inocente por uma vida de crime, ele ainda tinha muito respeito e apreço por aquele homem.

“Tio, num mexe com isso não. Num vai prestá!”, ele disse, quase implorando.

Sr. João continuou parado, esperando uma resposta. Mesmo sem ser agressivo, sua fisionomia e seu olhar diziam claramente que ele não iria desistir. Nelsinho finalmente sucumbiu: “Óia, ninguém sabe onde ele fica, mas talvez o Agnaldo lá da sorveteria sabe alguma coisa que eu não sei.”

Sr. João agradeceu, e dirigiu-se à região da sorveteria, onde outro garoto que frequentara as reuniões para crianças trabalhava para o traficante. Como era triste ver essas crianças, que poucos anos atrás cantavam corinhos e ouviam histórias da Bíblia, entregues a uma vida de violência e pecado. Como ele gostaria de poder ajudá-los! Ele agradeceu a Deus por ter preservado Claudineia, permitindo que ela ouvisse o Evangelho e fosse salva. Lembrar dela fez com que ele apertasse um pouco o passo, impaciente para resolver logo aquela situação.

A conversa com o Agnaldo não foi muito diferente da conversa com o Nelsinho, e ele seguiu assim por algum tempo, indo de um a outro. Até que, descendo uma rua deserta, ouviu uma moto aproximando-se por detrás dele. A moto parou ao seu lado, e outro garoto (parecia não ter mais do que treze anos), lhe falou, sem tirar o capacete:

“Tio, mandáru eu dizê pro senhô í na casa do Pepe, o cara da pizzaria.”

Antes do Sr. João poder agradecer, o garoto acelerou a moto e sumiu. Respirando fundo, ele rumou em direção à casa do Pepe. Sua mão direita comprimiu, no bolso da jaqueta, a pistola 9 milímetros que ele guardara por tantos anos debaixo do colchão. Ele já não estava tão decidido quanto antes — conforme andava na noite fria, parece que seus pensamentos iam tentando se organizar. Quando saíra de casa aquela noite, uma coisa só dominava seus pensamentos — encontrar o Bigodinho e resolver o problema que afligia a sua amada Totoizinha. Agora, porém, outros pensamentos começavam a se manifestar, ainda que timidamente — pensamentos mais coerentes e sábios. Mas infelizmente ainda eram pensamentos desconexos — não um exército organizado, apenas um bando de guerrilheiros tímidos e sem liderança.

Confuso, mas decidido, Sr. João estava chegando perto da pizzaria ao lado da qual morava o tal Pepe. Faltava dobrar uma última esquina, quando de repente várias coisas inesperadas aconteceram. Primeiro, uma viatura da polícia apareceu lá na frente, vindo lentamente ao encontro dele na sua ronda normal. Seus batimentos cardíacos aumentaram, mas ele continuou andando. Quase ao mesmo tempo houve um barulho intenso de troca de tiros vindo da rua ao lado, da direção da pizzaria, e o som de uma moto partindo em alta velocidade. Os policiais na viatura gritaram para ele se abaixar, bem na hora em que a moto virou a esquina em alta velocidade. Bandidos e policiais trocaram tiros freneticamente, enquanto o Sr. João corria em direção a um caminhão estacionado poucos metros atrás, com a intenção de se proteger do tiroteio. Mas não deu tempo — uma bala perdida o atingiu por detrás.

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Bem longe dali, em outra pizzaria, o silêncio foi rompido pelo aviso de uma mensagem sendo recebida por um celular. O estabelecimento estava fechado e praticamente deserto — só havia uma mulher ali, esperando no escuro. Ela olhou rapidamente a mensagem, que só dizia “feito!”, e desatou a chorar incontrolavelmente. Não era o choro desesperado de quem perdeu toda a esperança, mas o choro aliviado de quem finalmente vê um tênue raio de luz nascendo no horizonte.

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O dia amanhecia quando Davi se dirigiu, correndo, à casa do Sr. João. Virando a esquina, viu uma viatura policial se afastando da casa dele, e o portão se fechando. Ele apertou ainda mais o passo, e aproximou-se do portão em tempo de ver a porta da cozinha, que dava para o corredor lateral, sendo fechada. De tão afoito que estava, nem apertou a campainha, mas entrou correndo, desceu o corredor lateral, e abriu a porta da cozinha.

Ele se deparou com Claudineia e seus avós sentados à mesa, e o Sr. João em pé, um braço enfaixado perto do cotovelo, e segurando sua jaqueta na outra mão (obviamente era ele quem acabara de chegar à frente do Davi). Com a surpresa da entrada abrupta do Davi todos se assustaram, e o Sr. João, num movimento automático, girou rapidamente para ver quem chegava correndo por detrás dele. E foi justamente nesse movimento que a pistola caiu do bolso da jaqueta, bem no meio do chão da cozinha!

Por uma fração de segundo, houve silêncio absoluto. Claudineia, como sempre, foi a primeira a falar, com uma voz confusa e assustada: “Pai, isso é um revólver?”

O Sr. João se preparava para responder (depois da longa noite e do susto que acabara de levar, ele precisava recuperar o fôlego) quando o Davi disse, com voz ofegante: “Gente, eu vim correndo pra avisá que o Bigodinho foi morto essa noite … com um tiro de pistola 9 milímetros.”

Essa informação nova pegou todos de surpresa. Sr. João procurou uma cadeira para sentar, enquanto mil coisas passavam pelas mentes dos demais. Quem poderia ter matado Bigodinho? Teria o Sr. João assassinado o traficante para proteger sua filha?

Sr. João pôs as mãos na cabeça, orou rapidamente a Deus em silêncio, e depois disse: “Gente, eu estou envergonhado do meu comportamento essa noite. Deus já me ensinou, a tanto tempo, que é melhor deixar tudo nas mãos dEle — mas hoje quase que eu estrago tudo!”

Balançou a cabeça, e com o rosto pálido, continuou: “Essa pistola não funciona. É um presente que ganhei depois que salvei a vida da filha de um oficial militar. É um exemplar de colecionador, que vale muito dinheiro. Ontem à noite, depois que vocês foram dormir, eu fiquei transtornado com a possibilidade de acontecer alguma coisa com a minha filha …” — a voz falhou um pouco, mas ele continuou: “… e saí de casa decidido a encontrar o Bigodinho. Mas não para brigar com ele — eu ia oferecer essa arma em troca da sua segurança”, disse, olhando para Claudineia. “Eu ia conversar com ele, dizer que eu não sabia o que acontecera entre ele e a Cláudia, mas que eu e você não tínhamos nada com isso, e que daria a arma para ele se ele deixasse você em paz!”

“Mas pai, ele podia tê matado o senhor. Não dá pra confiá nesse tipo de gente!”

Com um sorriso envergonhado e triste, ele respondeu: “Eu sei, minha filha — foi loucura o que eu fiz. Mas ontem à noite eu não conseguia pensar direito. Eu só ficava pensando que você estava em perigo, e eu precisava fazer alguma coisa pra proteger você. Saí andando pela cidade, perguntado aqui e ali, até que recebi uma informação que parecia ser boa. Estava quase chegando no lugar onde acho que o Bigodinho estava escondido, quando começou um tiroteio. Acabei sendo atingido no braço — foi só de raspão, não fez nada — e uma viatura que estava passando me levou até o pronto socorro, onde passei quase a noite inteira de molho. Depois me trouxeram pra casa agora de manhã. Acho que foi bem naquele tiroteio que mataram ele!”

Claudineia estremeceu involuntariamente, e disse, abraçando-o: “Pai, o senhor podia tê morrido! Nunca mais faz isso! Promete?”

“Claro, minha filha, nunca mais vou ser tão impaciente e tolo! Eu tenho ensinado os outros sobre a importância de confiar no Senhor, mas essa noite eu achei que eu podia resolver tudo sozinho! Saí de casa sem pensar direito, sem orar pedindo a orientação de Deus — que loucura! Não sei o que eu estava pensando!”

Sr. José interrompeu: “Concordo que o senhor errou, mas dá pra entender seu erro. Nestas últimas trinta e seis horas o irmão passou por experiências muito fortes. Depois de vinte e cinco anos, finalmente o senhor encontrou sua filha — e poucas horas depois, surge uma ameaça à segurança dela. É claro que o certo seria ter esperado com paciência em Deus — mas graças a Deus, Ele lhe protegeu essa noite, e não permitiu que nada de mal acontecesse!”

“Sim, graças a Deus. A Bíblia diz que mesmo quando nós somos infiéis, Deus permanece fiel [II Tm 2:13], e foi isso que eu experimentei essa noite. Fico triste e envergonhado em pensar que agi como uma criança recém-convertida, e saí correndo tentando resolver tudo sozinho. Mas fico profundamente grato a Deus por Ele ter me preservado, e ter me ensinado a ser mais paciente.”

Davi pegou a arma do chão. “Que história é essa de salvar a vida da filha dum oficial, irmão? O senhor nunca contou isso pra gente.”

“É, faz muito tempo. E não foi nada. Eu estava no lugar certo, na hora certa. Mas como você ouviu da morte do Bigodinho?”

“Eu recebi outra mensagem no celular agora de manhã, dizendo pra eu avisá a Claudineia que ninguém mais ia perturbá ela. Não tinha certeza o que isso queria dizê, mas quando tava na fila da padaria, ouvi a notícia na televisão. Aí entendi a mensagem, e vim correndo dá a notícia.”

D. Maria falou pela primeira vez: “É a Cláudia. Não sei explicá, mas eu sei que é ela!”

“Mas será que ela matô ele, vó?”

“Tenho certeza que não”, Sr. João interrompeu. Ele ia falar novamente que tinha certeza que ela não era assassina, mas lembrou de Isabel [capítulo 4 — Descobertas], filha do casal idoso, e não quis mexer na ferida deles. “Mas concordo com D. Maria — e acho que esta história ainda não acabou!”

Claudineia veio abraçar seu pai novamente, completamente confusa. Ela não sabia o que pensar sobre sua mãe, sobre a morte de Isabel, e agora sobre a morte do traficante. Mas ela nunca se sentira tão segura e tranquila em toda a sua vida. Desde os treze anos de idade, quando fora salva pela graça de Deus, ela orava pelo seu pai, desejando conhecê-lo — e Deus respondera esta oração de uma maneira maravilhosa. Agora ela passaria a orar pela sua mãe também. As poucas horas de convivência com seu pai (horas intensas e frenéticas, é verdade) haviam transmitido ao seu jovem coração a lição preciosa que o Salmista expressou tão bem: “Esperei com paciência no Senhor, e Ele Se inclinou para mim, e ouviu o meu clamor”.

Ah, Senhor, tenha paciência da nossa impaciência!

Comentários

  1. A tal "impaciência" arranca de nós o privilégio de descansar no Senhor! Histórias muito legais!

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    1. O único consolo é que éramos mais impacientes na juventude! Devagarzinho, aos trancos a barrancos, vamos aprendendo um pouco :-(

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