3. Contendas

[Se quiser, leia primeiro a parte 1. Aniversário]

Davi andava apressado em direção à casa do Sr. João, num misto de irritação e ansiedade. Dobrando a esquina, porém, diminuiu sensivelmente seu passo, e hesitou um pouco antes de apertar a campainha. Mas ele havia pensado bastante sobre o que iria fazer, e não iria desistir agora. Apertou a campainha, sem prestar atenção à força com que o fez.

Logo estavam sentados na sala, e ele foi direto ao assunto: “Seu João, tenho duas coisas pra tratá com o senhor; vô começá com a mais desagradável. É sobre o Euclides e o Pedro — tem alguma rixa entre eles, e eu tô querendo conversá com eles sobre isso. Eles não pode participá da Ceia se não conseguem sê amigo um do outro. Eu tava pensano em falá pra eles que, enquanto eles não se acertá, eles não devia participá da Ceia. O que o senhor acha?”

Sr. João olhou para o Davi, pensando em como respondê-lo. Depois disse: “Sei ... E o outro assunto, qual era?”

Davi ficou momentaneamente desconcertado, mas já conhecia suficientemente o Sr. João para saber que ele não iria simplesmente ignorar a questão levantada, e voltaria a ela em breve. Meio à contragosto, respondeu: “Era sobre sua filha. Se ela tinha quarenta dias de idade quando foi embora, então ela já tinha sido registrada. E pela certidão de nascimento, eu creio que a gente consegue descobrí onde ela está.”

Sr. João sorriu — aquele sorriso triste que Davi já vira tantas vezes. Era como se só os lábios sorrissem, enquanto o resto do rosto chorava. “Mas são só os lábios que sorriem, idiota; vai sorrir com o nariz?” Davi pensou. Mesmo que a ideia parecesse um pouco ridícula, ele achava difícil tirar da mente aquela definição meio poética, meio incoerente: um sorriso só com os lábios.

“Ela foi registrada como Cássia Soares Brito; Soares era o sobrenome da mãe, e Brito o meu. Mas a mãe dela disse que havia mudado o nome dela, então não sei se adianta tentar”.

“Mas mudá o nome de alguém é difícil, Sr. João. Eu andei pesquisando, e o rapaz do cartório disse que até é possível mudá de nome, mas que na verdade o nome é ...” Ele parou enquanto tirava um pedaço de papel do bolso, e continuou, lendo o papel: “… imutável — não pode sê mudado. Existem exceções, mas só em casos de comprovado constrangimento ou problemas.” Olhou novamente para o Sr. João e continuou: “Um nome comum como Cássia Soares Brito não poderia sê mudado assim, à toa!”

Davi percebeu um pequeno brilho nos olhos do Sr. João, que respondeu: “Interessante, eu achei que a mãe poderia mudar o nome dela sem dificuldade. Na verdade, nunca quis pensar nisso, sabe? Me acostumei com a situação, e tentei seguir em frente sem ficar alimentando a esperança de encontrá-la.”

“Então, eu conheço um rapaz que tá estudando pra sê detetive particular, e se o senhor permití eu queria pedi pra ele vê se ele encontra a sua filha!”

Por um longo momento Sr. João fitou o chão, pensativo. Depois pegou sua Bíblia da mesinha ao lado da sua poltrona, abriu cuidadosamente numa página marcada, e ficou mais um tempo em silêncio. Davi estava curioso: que passagem será que ele estava lendo? Estavam sentados de frente um para o outro, e Sr. João segurava a Bíblia levemente inclinada, então era impossível para Davi ver o que ele lia. Quando ergueu os olhos, disse com um leve tremor na voz: “Se você conseguir alguma pista do paradeiro dela ficarei eternamente grato, meu filho!”

Davi ficou aliviado e satisfeito, e reclinou na cadeira novamente. “Creio que Deus vai nos ajudá nisso, irmão.”

“Espero que sim … espero que sim. E voltando ao assunto do Euclides e do Pedro” (ele falava pausadamente, como se procurasse as palavras certas), “eu também percebi que existe alguma coisa entre eles. Mas se você falar com eles nos termos que você propôs uns minutos atrás, você acha que o problema será resolvido, e eles vão se entender?”

“Na verdade, pra sê bem sincero, acho que não. Mas a questão não é essa; a questão é que eles estão errados, e não é certo eles ficá agindo assim, e ninguém fala nada com eles!” Ele percebeu que havia levantado um pouco a voz, e resolveu tentar se controlar melhor. A atitude dos dois o irritara bastante — ele sentia vontade de lançar-lhes em rosto o texto de I João 4:20: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso.”

“É, sem dúvida eles estão errados. É muito triste — prejudicam-se a si próprios, e prejudicam a igreja toda. Mas eu queria falar duas coisas pra você. A primeira é como a Bíblia nos instrui a agir em relação às contendas. Provérbios 20:3 diz que é honroso desviar-se de questões, mas todo tolo é intrometido; quer dizer, é mais sábio ficar longe de dois irmãos que estão contendendo do que se intrometer na briga alheia. E por quê? Em outras partes do livro de Provérbios, Salomão apresenta pelo menos três razões. Em primeiro lugar, porque resolver uma contenda não é fácil. Ele diz em 18:19: O irmão ofendido é mais difícil de conquistar do que uma cidade forte, e as contendas são como os ferrolhos de um palácio. Acho essa figura muito interessante — as contendas criam amarguras e cicatrizes na alma dos envolvidos que tornam tudo muito difícil, entende? Em segundo lugar, além de ser extremamente difícil resolver uma contenda, é muito difícil avaliar objetivamente a questão de todos os ângulos, porque raramente são só duas pessoas envolvidas. Salomão disse: Sem lenha, o fogo se apagará; e não havendo intrigante, cessará a contenda (26:20). Por que surge uma contenda? O Euclides e o Pedro terão versões diferentes para o problema deles. E mais: quantas pessoas estão por trás deles dois, colocando mais lenha na fogueira? Você não imagina como é triste tentar apaziguar dois irmãos, enquanto parece que outros sentem prazer em ver tudo queimar!”

Sr. João falava com calma, mas era evidente que ele não falava de coisas teóricas. Seu tom de voz, seu olhar, até a maneira como estava sentado na poltrona, os ombros caídos, mostravam que estas verdades haviam sido aprendidas da forma mais difícil. Mas o que realmente impressionava Davi era a maneira como ele citava versículos da Bíblia, como se conhecesse a Bíblia inteira de cor! Sr. João continuou: “Aquele que procura resolver uma contenda entre dois irmãos deve ter outra preocupação. Além destas duas dificuldades — as cicatrizes e os intrigantes — existe o risco de se queimar, ao invés de apagar o fogo! Salomão disse que aquele que se envolve numa questão alheia é como aquele que pega um cão pelas orelhas (26:17). Imagine que você esteja segurando um cão bravo pelas orelhas — além de haver uma enorme probabilidade de você sair machucado — uma mordida, ou um arranhão — além disso, suas mãos estão cheias, e você não pode nem pensar em soltar o cachorro, senão ele ataca você e a situação fica ainda pior. Quando alguém tenta acabar com uma contenda, logo descobre que a situação pode facilmente fugir do seu controle. O que estou tentando dizer é que você deveria orar muito antes de tentar conversar com eles — e depois de orar muito, ore mais um pouco ainda!”

Davi tentava processar tudo aquilo. Meio teimoso, ainda respondeu: “É, faz sentido o que o senhor diz. Mas alguém precisa falá com eles, irmão! Eles não podem ficá assim no bem-bom, como se estivesse tudo certo!”

“Bem, essa era a segunda coisa que eu queria falar com você: algumas pessoas já falaram com eles! Você não ficou sabendo porque, como contendas são coisas tão melindrosas, sempre procuramos tratar este tipo de problema da forma mais discreta possível. Mas tenha certeza que os dois sabem que estão errados, e estão sofrendo por causa disso. A consciência deles os acusa, e o Senhor está agindo na vida deles. Pode parecer que eles estão impunes, mas tenha certeza absoluta que os maiores prejudicados com esta situação são justamente eles dois!”

Ele continuou, inclinando-se um pouco para frente na poltrona: “Eu não quero dar a impressão que não devemos procurar resolver contendas entre irmãos — elas são um mal terrível para as igrejas locais. Mas lembra de como Paulo agiu diante do problema entre duas irmãs na igreja em Filipos? Eles simplesmente escreveu, por inspiração divina: Rogo a Evódia, e rogo a Síntique, que sintam o mesmo no Senhor! Ele não tomou partido, não disse para Evódia concordar com Síntique nem vice-versa, mas rogou que ambas chegassem a um acordo na presença do Senhor! Contendas são terríveis, Davi — mas como resolvê-las? É como tentar invadir um castelo, ou como controlar um cão raivoso! O que todos podemos fazer é orar para que Deus ajude os irmãos envolvidos. E aqueles que tem mais experiência e sabedoria podem, com muito temor e dependência divina, tentar restaurar a paz entre os contenciosos. Se o fogo alastrar, a igreja precisará agir em disciplina: mas enquanto vemos apenas algumas faíscas, devemos tomar cuidado para não aumentar o problema, e não sairmos queimados pelo fogo alheio”.

Ele parou um pouco, mas como Davi não tinha nada a dizer, ele continuou: “Vamos orar por eles, então?”

Ambos oraram, e pouco depois Davi se despediu, pensativo.

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Uma semana depois ele voltou à casa do Sr. João, e era difícil esconder o desapontamento que sentia. “Seu João”, foi logo dizendo, “falei hoje com aquele amigo meu. Ele diz que não consegue entendê o que acontece. Ele encontrô o registro de nascimento de Cássia Soares Brito, no cartório aqui mesmo, mas não consegue achá mais nada no nome dela! Nem aqui, nem lá na região do Vale Verde, pra onde a Cláudia foi quando abandonô o senhor. É como se ela tivesse desaparecido!”

“Tudo bem, meu filho; não se preocupe. Está tudo nas mãos de Deus! Ela deve ter conseguido mudar o nome da menina, de algum jeito.”

Conversaram mais um pouco, e logo Davi foi embora. Quando ele saiu, Sr. João sentou-se novamente, pegou a Bíblia, e abriu na mesma página que tanto intrigara o Davi na semana anterior. Olhou fixamente a página enquanto pôde — logo as lágrimas ofuscaram sua visão, e ele não enxergava mais nada. Mas deixou que as lágrimas caíssem, livremente. Há muito tempo ele aprendera que fazia bem chorar, e sempre que estava sozinho e as lágrimas brotavam, ele não as reprimia. Ele gostava das palavras do poeta irlandês:

Caiam livremente, diluindo a dor,
Abafem destas chamas o calor;
Lavem os recantos da minh’alma,
E sussurrem brandamente: Calma! [poesia completa]

Quando se levantou, fechou a Bíblia com muito carinho, dando uma última olhada no que ela continha: uma foto, já amarelada, dele mesmo segurando um bebezinho recém nascido — Sr. João e sua “Totoizinha”!

[Leia a parte 4. Descobertas]