26. Zênite

11. Koinonia

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



“Seu João, que qué dizê essa palavra ‘koinonia’? Eu já vi ela outras vezes também, não lembro aonde.”

Sr. João olhou para a pintura no muro ao lado, onde estava escrito “Lanches Koinonia”. Era segunda-feira à noite, e estavam sentados à frente da lanchonete aguardando seus lanches, quando Davi perguntou sobre o nome do estabelecimento.

“É uma palavra grega que é muito usada na Bíblia, e quer dizer ‘comunhão’. As pessoas no meio evangélico hoje gostam dessa palavra. Houve um grupo de cantores evangélicos alguns anos atrás que se chamava Banda Koinonia, e há uma organização ecumênica hoje que usa o mesmo nome. Se não fossem pelas nossas falhas, todos os salvos viveriam em plena ‘koinonia’ uns com os outros e com Deus — mas na realidade, o que mais vemos é salvos buscando a ‘koinonia’ do mundo!”

Claudineia interrompeu: “Hoje em dia é muito difícil confiá nas pessoas que se dizem crentes, né pai? Que nem aquele homem que foi na loja hoje à tarde me chamando de ‘irmãzinha’. Ele contô uma história tão emocionante sobre como ele se converteu quando táva em Jerusalém na época da Páscoa e viu um eclipse e entendeu que Deus táva falano com ele no mesmo lugar onde o Senhor Jesus morreu, e de repente vem a polícia e prende ele! Como que ele não enganô o senhor? Eu já tinha caído direitinho na conversa dele!”

Todos tentaram, mas ninguém conseguiu acompanhar a velocidade do relato da moça. Davi falou, sorrindo para ela: “Conta a história toda, que eu não entendi nadinha.”

Ela riu: “É, meu vô sempre falava que eu pareço uma metralhadora quando começo falá. Ai, ai! Mas foi o seguinte. Eu táva ajudando meu pai na loja, aí entrô esse cara todo engravatado. Ele me chamô de ‘irmãzinha’, e começô contá uma história muito interessante, né pai? Ele falô que muitos anos atrás ele foi visitá Jerusalém, mas não cria em Deus nem nada — tava só passeano. Aí ele falô que bem no dia da Páscoa dos judeus, ele encontrô um grupo de turistas cristãos que estavam falano que foi justo no dia da Páscoa que o Senhor Jesus foi crucificado. E ele pensô, assim meio zombano: ‘Só faltava tê um eclipse agora e ficá escuro, igual quando Cristo foi crucificado’. E ele falô que dois minuto depois teve um eclipse mesmo, e no escuro ele sentiu como se tivesse lá no Calvário. Eu até arrepiei do jeito que ele contava, sabe? Ele lá no próprio monte do Calvário, na mesma data que o Senhor Jesus morreu, e vendo o Sol escurecê no meio do dia, igual quando o Senhor morreu. Deu até vontade de chorá!”

Todos prestavam muita atenção na narrativa, e Claudineia continuou: “Só que nisso uns três ou quatro policiais passaram em frente à loja, como se tivesse procurano alguém, e eu vi meu pai fazê um sinal pra um dos guardas e apontá pro engravatado, e eles entraram na hora e levaram ele embora. Aí foi aquele fuzuê, um monte de gente ino e vino, e a gente descobriu que ele tinha assaltado um monte de loja já. Ele se fingia de ‘irmão’, ficava contano essas histórias de Jerusalém e tudo, e quando o dono da loja descuidava, ele tirava dinheiro do caixa e saía de fininho.”

“Que cara de pau!” exclamou Davi. “Mas como que o senhô desconfiou dele, Seu João?”

“Bom, ele disse que a conversão dele foi por causa de um eclipse que ele testemunhou lá em Jerusalém na mesma data em que o Senhor Jesus foi crucificado, na Páscoa dos judeus. Ficou realmente uma história muito bonita e impressionante, só que impossível — a Páscoa dos judeus sempre cai numa Lua cheia, e aí não poderia haver um eclipse no meio do dia”, Sr. João respondeu sorrindo.

“Mas teve um eclipse a semana passada lá no EUA no meio do dia, não foi?” Davi questionou.

“Sim, mas aí era Lua nova. Um eclipse solar — quando o Sol fica escuro no meio do dia — só pode ocorrer na Lua nova, quando a Lua fica entre a Terra e o Sol. Já um eclipse lunar — quando a Lua escurece no meio da noite — só pode ocorrer na Lua cheia, quando a Terra fica entre a Lua e o Sol. O mês judaico sempre começa com uma Lua nova, e a Páscoa é sempre no dia 14 do primeiro mês — quer dizer, sempre numa Lua cheia. Nosso amigo confundiu as coisas — na Páscoa poderia haver um eclipse da Lua, à noite, mas um eclipse do Sol, no meio do dia, é impossível. Eu já estava achando meio suspeito o jeito dele conversar e as histórias que ele estava contando pra Claudineia — mas quando ele falou isso eu tive certeza que ele estava mentindo. E logo depois, vendo a polícia passar procurando alguém, eu deduzi que eles estavam procurando o nosso amigo contador de histórias.”

“Interessante”, disse o Davi. “E foi bom que prenderam ele.”

Ouve um pequeno silêncio, e o Sr. José perguntou: “Irmão, o senhor falou agora há pouco sobre um grupo ecumênico que se chama koinonia. Já ouvi pessoas falando de ecumenismo, mas para ser sincero não sei o que é. O senhor podia explicar, resumidamente?”

“O ecumenismo é um movimento que busca a unidade entre as igrejas chamadas cristãs, e que procura unir católicos e protestantes. Na teoria, parece algo muito bom, porque essas inúmeras divisões entre os cristãos são um péssimo testemunho para o mundo. Seria maravilhoso se todos os salvos pudessem ter plena comunhão uns com os outros, e vivessem em plena koinonia. Mas o ecumenismo, infelizmente, parte do princípio que o que nos une é maior do que o que nos separa, e procura promover a união apesar das diferenças, e não resolvendo as diferenças. No Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil, por exemplo, estão juntas a Igreja Católica e a Aliança de Batistas do Brasil, entre outras. Como podem dois grupos, tão diferentes um do outro, trabalhar juntos? A Bíblia diz: ‘Andarão dois juntos se não estiverem de acordo?’ (Am 3:3). Seria maravilhoso se todos os salvos tivessem o desejo de mudar seu comportamento para concordar com as Escrituras — mas querer se unir e continuar pregando mensagens tão diferentes é, na prática, impossível!”

“Mas quando a gente não tem comunhão com outros crentes”, perguntou Davi, “não dá a impressão que a gente acha que é melhor do que eles?”

“É, pode dar essa impressão. Mas em todas as questões, o mais difícil é achar o equilíbrio. É fácil ficar isolado e ser um ‘exclusivista’, como muitos falam. Também é fácil abraçar todo mundo e aceitar tudo e todos. Mas temos que lembrar que, nessa questão de comunhão, existem dois princípios diferentes pelos quais precisamos zelar. Um deles é que, como filhos de Deus, precisamos mostrar amor pelo nosso próximo, e principalmente pelos nossos irmãos. O outro é que devemos zelar pela sã doutrina apresentada na Palavra de Deus, e não abaixarmos o padrão que Deus estabeleceu ali.”

“E quando surge um conflito entre eles, qual dos dois princípios deve prevalecer?”, perguntou o jovem.

“Os dois!”, Sr. João exclamou, com convicção. “Sempre devemos amar todos os nossos irmãos em Cristo, e sempre devemos zelar pela sã doutrina. Nunca podemos abandonar nenhum destes dois princípios.”

“Mas e se alguém me chamar pra ir numa reunião ali, por exemplo”, disse Claudineia, apontando para um local de reuniões a poucos metros de onde eles estavam, de onde emanava naquele momento um barulho desordeiro e confuso. “As mulheres lá não usam véu, tem um monte de barulheira, e coisas assim. Se eu for lá eu não vô tá concordando com eles, tendo comunhão com eles? E se eu não for, a pessoa que me chamou pode ficar chateada comigo!”

“É uma situação complicada, minha filha. Mas lembre que amar o meu irmão não quer dizer ‘fazer tudo que meu irmão pede’. No caso que você citou, certamente você não deveria ir naquela reunião. Mas a questão é como você vai transmitir isso pra sua amiga. Se você desdenhar do convite, e disser, com um olhar de desprezo: ‘Olha, vocês fazem tudo errado — eu não posso reunir com vocês’, você estará demonstrando que se considera melhor do que eles. Muito melhor seria você dizer, com sinceridade: ‘Amiga, eu teria muito prazer em reunir junto com você. Mas eu não posso reunir da forma que vocês reúnem, porque a Palavra de Deus diz que nós devemos reunir unicamente ao nome do Senhor Jesus Cristo, e que as irmãs devem cobrir suas cabeças nas reuniões. Se eu for reunir com vocês, eu vou estar desobedecendo à Palavra de Deus, e eu não posso fazer isso’. É bem possível que, ainda assim, sua amiga se ofenda, mas pelo menos você tentou ser gentil com ela.”

“Concordo com o senhor”, Sr. José completou. “Desde quando me converti ao Senhor Jesus, eu nunca mais me reuni em nenhuma das muitas ‘igrejas’ que os homens criaram. No começo, eu confesso que sentia orgulho nisso, como se eu fosse o único que agradasse a Deus. Com o passar dos anos, porém, fui percebendo que eu desagrado a Deus em tantas coisas, que não tenho o direito de me sentir melhor do que ninguém. Continuo não reunindo a não ser em igrejas locais, mas isso já não me traz nenhum orgulho. Só sinto tristeza em ver as divisões que o inimigo criou entre nós.”

Ele falava pausadamente, com olhar sério e compenetrado. Olhando para sua neta, ele continuou: “Uns anos atrás a Claudineia foi convidada para uma reunião na denominação onde uma colega de escola frequentava, e nós não permitimos. Você lembra do que lhe explicamos, filha?”

“Lembro, vô. O senhor disse que a única forma bíblica de reuní era reuní unicamente ao nome do Senhor Jesus, como a gente reúne. Depois o senhor pegô minha mão e falou: Claudineia, nós não somos melhores do que sua amiga. Reunimos da forma bíblica, mas talvez essa seja a única coisa que a gente faz certo! Talvez na vida pessoal dela ela consegue agradá a Deus muito mais do que nós, então não devemos desprezá-la. Mas já que aprendemos sobre a forma certa de reunir, não podemos desobedecer a Deus nisso’.”

Ela riu da forma formal em que havia se expressado, imitando até os gestos do avô, e completou: “Foi mais ou menos assim”.

Sr. João entrou na conversa novamente: “É isso mesmo, irmão — apreciei muito esse conselho que vocês deram pra ela. Eu resumiria a questão assim: sem dúvida alguma, se nós reunirmos juntos com as denominações estaremos errando, pois já aprendemos sobre a forma certa de reunir. Mas mesmo se não reunirmos com eles, também poderemos estar errando. Se a nossa separação nos enche de orgulho por que achamos que só nós estamos certos, então nós pecamos contra Deus, esquecendo das muitas falhas que temos.”

“É difícil manter esse equilíbrio, né?”, perguntou Davi.

“É, muito difícil. Muitas vezes irmãos em Cristo que são meus clientes, e com quem converso sobre a Bíblia lá na loja, insistem comigo para ir numa reunião com eles, e fico com vontade de agradá-los nisso — mas não posso desobedecer a Deus. E depois vem aquele orgulho carnal me dizendo que eu sou melhor do que eles, que eu fui fiel em não ir com eles, e coisas assim. É difícil manter o equilíbrio!”

“É”, completou Sr. José, “como o senhor disse uns minutos atrás, em todas as questões da vida, sempre o mais difícil é o equilíbrio.” Fez uma breve pausa enquanto o garçom colocava seus lanches na mesa, depois continuou: “Vamos dar graças pelos alimentos, então, e enquanto comemos podemos ir ruminando estas coisas que conversamos”.

Ele fez uma oração breve e em voz baixa, sem incomodar os clientes das mesas vizinhas — era um homem discreto, que não tinha vergonha de demonstrar publicamente a sua fé, mas que não queria impressionar nem chamar atenção.

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Quando foram pagar seus lanches, tiveram uma surpresa. O dono do estabelecimento, vizinho do Sr. João há muito tempo, disse:

“Seu João, tá pago. Uma mulher que não conheço entrô aqui e pagô o de vocês. Falô que era mãe da menina aí, e queria fazê uma surpresa pra ela”, disse, apontando para Claudineia.

O silêncio foi constrangedor. Claudineia simplesmente abraçou seu pai — os dois estavam completamente sem reação. Sr. José pôs o braço em torno dos ombros de D. Maria, e ambos se afastaram um pouco — D. Maria estava um pouco ofegante. Davi foi quem se recuperou primeiro, agradeceu o dono da lanchonete, e conduziu todos para casa.

Sr. João se perguntava se teria sido mesmo a Cláudia. Será possível que ele não tivesse reconhecido sua esposa? Claudineia pensava mil coisas, e ao mesmo tempo, não pensava nada. Eram tantas vozes falando ao mesmo tempo no seu coração, que nenhuma delas realmente era ouvida. E D. Maria ficava repetindo para seu marido: “Eu sabia que ela ia aparecê — eu sabia!”

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