26. Zênite

22. Vida de fé

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]



João olhou em torno da mesa na praça de alimentação do shopping com imensa alegria. Sua esposa e sua filha estavam finalmente juntas, depois de vinte e cinco anos, tentando pôr em dia suas histórias (ele não sabia se estavam entendendo uma a outra ou não, pois parecia que as duas falavam ao mesmo tempo, e sem parar — mas isso era um mero detalhe). Do outro lado da mesa, Davi respondia as muitas perguntas de Rita (que havia encontrado o grupo pouco tempo depois de se conhecerem). Ele estava satisfeito só em estar presente naquela mesa, vivendo um momento que, há poucas horas atrás, parecia impossível de ser alcançado.

Envolto em seus pensamentos ele não ouviu a pergunta do Davi, mas percebeu que todos haviam parado de conversar e olhavam para ele. Com um sorriso meio sem graça, perguntou: “Perdi alguma coisa?”

“Eu queria sabê o que o senhor táva pensano, pai”, respondeu Claudineia, com aquele sorriso espontâneo que ele aprendera a amar tão depressa.

“Estou pensando em como Deus tem sido bom pra mim. Estarmos todos juntos, todos salvos pela graça de Deus, é maravilhoso demais. Nunca deixei de orar por esse momento, mas sinceramente, muitas vezes pensei que pedia uma coisa impossível! Meu coração desejava esse momento, mas minha fé duvidava que ele aconteceria!”

“Eu tava perguntano justamente sobre a fé, seu João”, disse Davi. “Mas acho que o senhor não ouviu.”

“É, eu estava completamente absorto em meus pensamentos! O que você perguntou?”

“A dona Cláudia falô que agora precisava aprendê a vivê pela fé, e a Claudineia disse que achava que isso era coisa só pra missionário. Aí descobrímo que a gente não sabe muito sobre esse assunto. O que o senhor diz pra nós sobre vivê pela fé?”

“Bem, essa expressão às vezes quer dizer coisas diferentes pra pessoas diferentes. No sentido mais básico, todo cristão precisa aprender a viver pela fé. Paulo escreveu que andamos por fé e não por vista [II Co 5:7], querendo dizer que o princípio controlador da vida do cristão é diferente do mundo. Os incrédulos vivem para o presente, e as decisões que tomam quanto ao futuro são todas baseadas naquilo que conhecem deste mundo material. Mas o cristão deve viver para a eternidade, e as decisões que tomamos devem ser baseadas naquilo que cremos, não naquilo que vemos. Devemos andar por fé, e não por vista.”

“Então não é só pra missionários, pai?” perguntou Claudineia.

“Não, minha filha, é pra todos nós. Por outro lado, geralmente essa expressão ‘viver pela fé’ é usada pra falar daqueles que vivem do Evangelho. Deus tem um plano para cada um dos seus filhos e filhas, e para alguns o plano de Deus é que Seu servo sobreviva, não de um salário, ou aposentadoria, ou outra forma de renda, mas das ofertas de outros cristãos. Esses servos, diferentemente dos demais servos, não tem uma fonte humana de sustento — por isso costumamos dizer que eles vivem pela fé, porque não sabem de onde virá o sustento do próximo mês. Mas realmente todos os salvos devem viver pela fé.”

“Mas essas pessoas não são sustentadas pela igreja?” interrompeu Cláudia. “Não recebem uma contribuição fixa todo mês, igual um salário?”

João precisou se concentrar na pergunta — a situação toda parecia um sonho. Ele acordara naquele dia sem saber se veria novamente sua esposa. Quando viu Cláudia em pé cerca de uma hora atrás, de costas para Davi e Claudineia, hesitando, ele finalmente entendeu um pouco do conflito que ela vivia, e aceitou que não deveria pressioná-la. Tentou transmitir esta tranquilidade a ela indiretamente, na esperança que, mais cedo ou mais tarde, ela aprenderia a confiar neles. Mas nunca imaginou que tudo teria acontecido tão rapidamente, e que estariam aqui conversando sobre a vida cristã!

Forçou seus pensamentos a voltarem ao assunto em questão: “Isso realmente acontece no mundo religioso”, ele disse. “Muitas igrejas dos homens tem os seus empregados, que recebem salários e outros benefícios. Mas nós reunimos tentando seguir o modelo deixado no Novo Testamento, e nesse modelo não vemos isso. Em I Coríntios cap. 9 Paulo mostra claramente que alguns vivem do Evangelho, então entendemos que é certo alguns não terem vínculo secular (com emprego ou empresa) para poderem se dedicar mais intensamente ao Evangelho. Esse ponto é claro. A questão é, quem é responsável pelo sustento dessas pessoas? A maioria pensa que deve haver um vínculo entre o servo e a igreja de onde ele veio (ou onde ele reúne agora) — isto é, a igreja local seria responsável por garantir o sustento dele. Outros pensam que devemos criar instituições missionárias que vão garantir o sustento justo de todos os seus ‘associados’. Mas creio que o modelo bíblico é que Deus sabe as necessidades dos Seus servos, e Ele supre essas necessidades movendo os corações de indivíduos e igrejas para ofertarem para esses irmãos. Ele usa as igrejas e indivíduos, mas sem intermediários — é Deus quem administra tudo, diretamente.”

Davi sempre havia ficado curioso com essa questão do sustento missionário, mas nunca tivera oportunidade de perguntar a ninguém. Agora, percebeu que tinha mil e uma dúvidas. “Mas isso funciona, seu João? Assim, sem organização ou controle humano?”

Sr. João olhou em volta da mesa, e percebeu que não era apenas Davi que estava curioso. Sentindo-se à vontade entre eles, respondeu abertamente: “Parece impossível, mas funciona sim, Davi. Faz quase dois mil anos que milhares de pessoas tem servido a Deus dessa forma. Existem casos muito notórios, como o de George Muller —sugiro que você leia uma das biografias dele. E eu conheci, pessoalmente, um homem que me ajudou a ver isso funcionando na prática. Durante a nossa convivência ele me confidenciou várias situações, com a exigência de que eu guardasse suas histórias em segredo. Como ele faleceu dois anos atrás, vou tomar a liberdade de mencionar algumas situações para vocês.”

O silêncio e a atenção de todos ali na mesa contrastava com o burburinho e movimentação da praça de alimentação do shopping. “Esse irmão”, começou, “Deixou seu país e passou quase sessenta anos aqui no Brasil. Nenhuma igreja ou organização missionária tinha qualquer compromisso ou promessa em relação ao sustento dele, porém durante todo este tempo Deus o sustentou aqui no Brasil. Ele gostava de dizer que Deus não lhe deu tudo que ele queria, nem tudo que ele achava que precisava, mas que ele podia dizer, honestamente, que nunca faltou nada necessário para a sobrevivência dele e para o desempenho do seu serviço. Quando a Segunda Guerra Mundial fez com que o Brasil ficasse meses sem comunicação postal com o país dele, Deus forneceu uma oportunidade dele dar aulas de inglês temporariamente, suprindo assim as necessidades presentes dele — como Paulo fazendo tendas. De uma forma ou de outra, Deus sempre permitiu que ele tivesse o necessário para o seu sustento. Muitas vezes a solução vinha na última hora — mas sempre vinha. Ele me contou que, certa vez, assumiu o compromisso de passar uma semana tendo reuniões com uma igreja a cerca de mil quilômetros de onde morava. Nos dias anteriores à viagem seus recursos estavam escassos, e ele e sua esposa oravam por isso. Na última noite antes da viagem, estavam confusos. Planejavam sair de madrugada, o casal e duas pequenas filhinhas, mas não tinham recursos para a viagem. O combustível do carro não daria para ir muito longe, e seus recursos estavam no fim. Jantaram naquela noite sem saber se conseguiriam fazer a viagem, ou se teriam que desistir. Mas perto das dez horas da noite, um casal de uma igreja vizinha bateu na porta da casa deles. Nem quiseram entrar — vieram só pra entregar uma oferta, mais do que o necessário para a viagem. E aquela foi a única vez que esse casal fez isso!”

“Uau!” exclamou Claudineia. “E ele viveu dessa forma durante sessenta anos?”

“Sim — e isso é o mais impressionante nessa história. Se coisas como essas que eu acabei de contar acontecessem uma ou outra vez, alguém poderia dizer que foi coincidência. Mas se durante sessenta anos uma família inteira é sustentada, todo ano, todo mês, por ofertas voluntárias, sem ninguém saber das necessidades deles, não pode ser coincidência!”

“Ele nunca fazia propaganda das necessidades dele, pai?” perguntou Claudineia novamente.

“Não, minha filha; sou testemunha disso. Ele confiava tanto na fidelidade do sustento de Deus que evitava até mencionar coisas legítimas, mas que poderiam dar a impressão de serem um pedido indireto de ajuda. Ele queria ter certeza que Deus, não os homens, o sustentava. Ele também me contou que ficava desconfiado quando recebia mais do que precisava. Se vinha uma oferta além das necessidades presentes dele, ele pensava: ‘O que será que vai acontecer? O carro vai quebrar? Alguém vai ficar doente? Por que Deus está me dando isso?’ Pra ele, as ofertas não eram um mero exercício religioso, mas eram a mão de Deus guiando-o e sustentando-o. Eu vi, na prática, essa confiança dele em Deus, e me marcou muito.”

Davi, pensativo, completou: “É, não imaginava que era assim. E parece mesmo impossível! Ele nunca sabia quanto teria pra gastá no próximo mês?”

“Exatamente; ele precisava viver um dia de cada vez. E, na realidade, todos nós somos assim, pois ninguém sabe o dia de amanhã. Aquele emprego aparentemente tão seguro pode acabar da noite para o dia; um acidente de carro muda totalmente a vida de uma pessoa. Mas entendo o que você diz; ele nunca pôde fazer uma previsão financeira para o futuro. Mesmo assim, criou sua família sem problemas. Ele nunca teve um carro ‘zero quilômetros’, mas os carros que possuiu rodavam milhares de quilômetros todo mês. E ele fazia questão de não reclamar, nem insinuar que precisava de alguma coisa. Só me contou as histórias que conheço depois de muitos anos de convivência, já com idade bem avançada. Lembro até hoje dele dizendo: ‘João, vou contar algumas coisas pra você. Depois de revelar estes segredos, vou pedir que você nunca mais me dê uma oferta, para não haver constrangimento entre nós dois. Mas vou pedir também que você seja mais e mais fiel em relação a todos aqueles que vivem do Evangelho’. E desde então, comecei a pensar seriamente nisso: Deus sustenta esses irmãos, e eu posso ter o privilégio de ser a ferramenta que Ele usa para isso.”

Houve um pequeno silêncio, até que Cláudia disse: “É, parece impossível. Funcioná por um ou dois anos, ainda dá pra acreditá — mas uma vida inteira? Por outro lado, nestes últimos dias eu já vi tanta coisa impossível acontecendo na minha vida, que tô aprendendo que pra Deus não tem nada impossível”.

Davi riu, e falou:“É, nossa vida é mesmo vivida pela fé. Como diz o seu João: Creio, logo existo!”

Rita, ouvindo estas palavras, deixou cair o garfo que segurava. Com o rosto pálido e os olhos arregalados, fitou Sr. João com olhar atordoado, e sussurrou: “Eu me lembro agora — foi você!”

Sr. João abaixou a cabeça, visivelmente constrangido. “Sim. Quando te vi aqui no shopping te reconheci, mas não tive coragem de revelar minha identidade. Não sei se você já se recuperou do trauma. Desculpe.”

Cláudia e o jovem casal olhavam de um para outro, sem entender nada. Até que Claudineia disse, com a voz trêmula: “Pai, que que tá acontecêno?”


[Nota do autor: as ilustrações sobre o sustento mencionadas nessa história são todas baseadas em fatos reais. Tive o privilégio de ser criado por pais e avós que foram sustentados por Deus dessa forma. Nunca me passaram a impressão de que se consideravam melhores do que outros cristãos, e nunca reclamaram de como Deus cuidou deles. Isso serve de incentivo para mim, para que confie mais em Deus, e espero que ajude também aos leitores desta simples história]





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