26. Zênite

4. Descobertas ...

[Se quiser, veja o início desta série lendo a parte 1. Aniversário]

Foto de um cemitério familiar tirada no Nordeste em 2004


“Vó”, disse Claudineia, “eu queria fazê uma pergunta pra senhora.”

“Claro, minha filha; fique à vontade”, respondeu dona Maria Mendonça.

Claudineia hesitou. Há dias ela pensava sobre qual a melhor maneira de abordar o assunto, esperando o momento certo (ou a coragem para falar, talvez seria mais correto dizer!). E agora que a hora chegara, era mais difícil do que ela pensara que seria.

Ela e Davi haviam conversado bastante pelo celular sobre isto. Já que a ideia de pesquisar sobre a filha do Sr. João não dera certo, Davi sugeriu que ela poderia perguntar aos seus avós sobre a Cláudia. “Aí na roça muita coisa fica em segredo, porque cada um mora longe do outro — mas todo mundo conhece todo mundo. Seus avós devem sabê alguma coisa sobre uma mulher que chegô vinte e cinco anos atrás com uma criança recém-nascida. O Sr. João disse que ligô pra ela quando a filha ia completá um ano, lembra? Então ela deve tê voltado pra casa dos pais dela, e seus avós devem sabê quem é essa família!”

Ela achara a ideia ótima quando o Davi sugeriu — mas agora que chegara a hora de perguntar, ela não tinha tanta certeza. Sua avó estava de costas para ela, secando a louça que Claudineia acabara de lavar. Respirando fundo (ela não era muito dada a hesitações e ponderações) ela falou rapidamente: “Vocês já ouviram falá numa mulher chamada Cláudia Soares Brito?”

Com um som que parecia meio grito de desespero, meio gemido angustiante, D. Maria prontamente desmaiou, e o prato que ela segurava na mão se estilhaçou no chão.

“Vô”, gritou Claudineia, “A vó desmaiou!”

O Sr. José chegou imediatamente, mas D. Maria já estava voltando a si. A não ser por um pequeno corte superficial na mão (culpa dos estilhaços do prato) ela parecia não ter sofrido nada. Isto é, fisicamente, porque emocionalmente ela estava em trapos. Começou a chorar incontrolavelmente — aquele choro forte que fica preso por muito tempo, e que quando finalmente acha uma fresta na armadura da alma pela qual pode sair, sai com uma violência que sacode a pessoa inteira, e parece uma tempestade de verão.

Sr. José olhou para a neta e perguntou: “O que houve, Claudineia?”

Claudineia nunca se sentira tão assustada na vida, mas conseguiu se concentrar e responder: “Não sei, vô. Eu tava conversano com ela, e perguntei se ela já tinha ouvido falá de uma mulher chamada Cláudia Soares Brito, e ela gri—”.

“Certo, eu já sei o que aconteceu”, interrompeu seu avô, com um leve tremor na voz. “Me ajude a levantar sua avó e levar ela pra cama. Ela vai ficar bem.”

Deitaram D. Maria na cama, e o Sr. José, dando um abraço na Claudineia, disse com carinho: “Fique tranquila, filha; mais tarde eu explico o que aconteceu com sua vó. Essa Cláudia fez algo terrível muitos anos atrás, e sua avó sofre com isso até hoje. Ela já conseguiu perdoar a Cláudia, mas as feridas ainda não cicatrizaram!”

Claudineia assentiu com a cabeça — estava confusa e assustada. Foi para seu quarto tentar conversar com o Davi pelo celular, mas não consegui falar com ele. Deixou um recado, avisando que tentaria mais tarde.

Algum tempo depois Sr. José chamou sua neta, e os três dirigiram-se ao pequeno cemitério familiar que havia nos fundos da terra onde a família do Sr. José morava há várias gerações. D. Maria estava quieta e um pouco pálida, e andava com o braço apoiado no do seu marido.

Chegaram diante dos túmulos que descansavam debaixo da sombra das árvores, e Claudineia dirigiu-se, quase que automaticamente, ao túmulo de Isabel Mendonça. Quantas vezes ela já visitara esse lugar, e esse túmulo em especial. Hoje em dia as visitas eram mais espaçadas, e raramente produziam lágrimas — mas eram sempre ocasiões dolorosas, e para Claudineia aquele canto era um lugar quase sagrado. Ela olhou para o túmulo de Isabel, e disse baixinho para seu avô, que chegara ao seu lado e pusera o braço em torno dos ombros da neta: “Tenho saudades da minha mãe, vô. Realmente nem lembro de como ela era, mas mesmo assim tenho saudades. Nem sei se isso faz sentido!” Ela cruzou os braços com força — sentia-se com frio sempre que ia ali.

“Faz sentido sim … e eu também tenho saudades da minha filha”, disse o Sr. José. Respirando fundo, continuou: “E é por isso que sua avó ficou tão transtornada quando você mencionou a Cláudia”. Ele falava com voz baixa, para que D. Maria, que sentara num tronco de árvore caído uns metros atrás, não ouvisse todos os detalhes. Ela sabia o que o Sr. José iria contar à sua neta — mas ela preferia não ouvir. “Nós já falamos pra você como sua mãe morreu, não é?” ele continuou, encostando a cabeça na dela.

“Sim — ela foi assassinada, e o assassino dela está preso até hoje.”

“É. O que nós nunca dissemos pra você é que quem matou nossa filhinha linda, quando ela tinha vinte e três anos, e quando você não tinha ainda dois anos, foi …”

Ele parou, buscando forças para controlar as emoções e terminar a frase. Mas Claudineia já sabia! Um nó na boca do estômago dela, e uma voz insistente na sua cabeça, já avisam para ela o que seu avô iria dizer. Incredulidade, raiva, medo, e tantas outras coisas brigavam por atenção na sua mente de menina, e ela ouviu a sua própria voz dizendo: “Cláudia Soares Brito!”

Após um pequeno intervalo, que pareceu durar alguns dias, Sr. José continuou: “Sim. Quando ela ainda não tinha um ano de idade os pais dela, vizinhos nossos, foram pra São Paulo querendo melhorar de vida, e deixaram a filha deles conosco. Nunca mais voltaram. Nós criamos ela como se fosse nossa própria filha. Sua mãe nasceu um ano e meio depois, e nunca teve boa saúde. As duas cresceram juntas, como se fossem irmãs, até que Cláudia, com vinte e dois anos de idade, resolveu ir pra São Paulo procurar os pais dela. Tentamos fazer ela desistir da ideia, mas ela era muito gananciosa, e acho que realmente queria uma vida melhor do que nosso Vale podia oferecer. Ela foi embora, mas voltou uns três ou quatro anos depois. Estava mudada — assustada, escondendo muita coisa da gente, sabe? Ficou conosco mais uns dois anos. Até que um dia eu e sua avó fomos à cidade com você, e quando voltamos a polícia estava aqui. A sua mãe, nossa filha querida, era doente — não saía da cama — e a Cláudia havia dado um tiro nela, matando ela na hora. Nunca soubemos porque, nunca conseguimos entender — nunca conseguimos esquecer. Alguém que considerávamos nossa filha matou a única filha que sua avó gerou — e sua avó quase morreu de tristeza!”

Ele conduziu Claudineia para perto da D. Maria. Sentaram ao lado dela e, segurando a mão da sua esposa, o Sr. José continuou falando: “Você não imagina a dor que sentimos. Sinceramente, acho que só continuamos vivos porque tínhamos você para criar. Você não tinha dois anos ainda, e nós fizemos a nossa tristeza e dor se transformar em amor por você.”

Ele parou, e deu um beijo na cabeça da Claudineia. Sentado entre sua esposa e sua neta, ele sentia uma vontade enorme de ir embora dali com elas, e esquecer para sempre esse assunto. Mas era preciso continuar.

“Nós temos ensinado você que o cristão deve perdoar sempre, em qualquer circunstância. Lembra do versículo que você decorou quando ainda era criança? Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros como também Deus vos perdoou em Cristo. Oramos muito a Deus, e Ele nos deu a força necessária para perdoamos a Cláudia. Mas nunca conseguimos ir visitá-la na cadeia, e fizemos de tudo para esquecer dela. Não porque odiamos ela, entende? É porque lembrar dela nos faz lembrar da nossa filhinha, e de todo o sofrimento que nós dois, e você também, passamos. Já fazem mais de vinte e três anos, mas parece que foi ontem!”

Ficaram em silêncio por vários minutos. O casal idoso chorava mais uma vez pela ferida antiga, mas que agora parecia tão recente de novo. Claudineia chorava pela descoberta que fizera sobre a morte da sua mãe, e pensava no sofrimento que a Cláudia causara em tantas pessoas. De repente seus pensamentos voaram para o Jardim das Flores, 950km dali. Como o Davi reagiria diante destas notícias? Como contar para o Sr. João que a esposa dele, além de levar a sua filha embora, estava presa por ter matado uma mulher inocente, aparentemente sem razão nenhuma? E o que acontecera com a filha deles? Sr. João ficaria mais preocupado ainda pensando que sua amada “Totoizinha” talvez fora abandonada! Claudineia lembrou que seu avô não falara nada sobre uma criança. Será que ela deveria perguntar? O que teria acontecido com essa criancinha? Será que Cláudia nunca a trouxera para cá?

A dor que ela estava sentido naquele momento, e todas as dúvidas que passavam pela sua cabeça, precisavam de uma válvula de escape. E para Claudineia, a válvula de escape era falar! “Vô, eu não consigo perdoá ela. Eu nem sei se ela se arrependeu! E mesmo que ela viesse rastejano e pedino desculpas, nem assim não sei se eu conseguiria perdoá ela. Ela não podia tê feito o que fez! E a Bíblia não diz que Deus vai lançá o pecador que não se arrepende no inferno? Se Deus não perdoa o pecador que não se arrepende, por que eu preciso perdoá a assassina da minha mãe, que eu nem sei se se arrependeu? Por que ela fez isso com a gente, vô?”

Não conseguiu continuar — chorava muito. O Sr. José pôs novamente o braço em torno dos ombros da sua neta, e beijou sua cabeça. Deixou ela chorar à vontade, depois respondeu: “Deus não é como nós, minha filha. Ele é o Juiz que precisa fazer justiça; quando Ele perdoa alguém, aquela pessoa é justificada, e não é mais considerada pecadora. Mas eu e você não temos o poder, muito menos o direito, de perdoar nesse sentido. Quando eu perdoo alguém, a única coisa que muda é o sentimento que eu tenho pela pessoa que errou, entende? Se eu perdoar você de todos os seus pecados, isso não faz de você uma pessoa inocente diante de Deus — só quer dizer que eu não sinto raiva de você. Quando Deus perdoa alguém, Ele muda a pessoa que foi perdoada; quando eu perdoo alguém, eu só mudo a mim mesmo. O perdão que Deus dá não é só deixa-isso-pra-lá — é justificação, por isso só pode ser dado a quem se arrependeu, e só porque o Senhor Jesus já pagou esta dívida lá na cruz do Calvário. Mas eu não posso justificar ninguém, entende? O máximo que eu posso fazer é dizer: deixa-isso-pra-lá; eu não vou procurar vingança. Mas isto não livra a pessoa do juízo de Deus.”

Ela nunca pensara no perdão deste ponto de vista, e prestou atenção enquanto seu avô continuava: “Se eu não perdoar alguém que me fez mal, o único que sofre sou eu. Aquela amargura guardada na minha alma vai me corroendo por dentro, fazendo mal espiritualmente e emocionalmente. Mas se eu perdoo, eu estou efetivamente lavando as mãos, abrindo meu coração e mandando embora aquele sentimento de vingança, e deixando que Deus julgue aquela pessoa — e assim eu consigo prosseguir em paz. A Cláudia precisa se arrepender dos seus pecados para receber o perdão de Deus, senão ela será lançada no inferno. Mas o meu perdão ela já tem”.

Claudineia encostou a cabeça no ombro do avô, e ficaram assim enquanto o Sol se punha. Em silêncio, Sr. José orou a Deus e pediu que Ele desse forças para todos eles enfrentarem novamente aqueles pesadelos que haviam ficado escondidos por algum tempo, mas que eles nunca conseguiam enterrar em definitivo.

-------------------------

À noite, depois de contar tudo para Davi, Claudineia orou a Deus antes de dormir. Não foi uma oração no sentido religioso da palavra — como se fosse um monólogo perante Deus. Ela simplesmente entrou na presença dEle e permitiu que Ele examinasse os pensamentos (milhares deles) que passavam pela sua cabeça. “Eu preciso perdoar a Cláudia!” “Mas ela abandonou o Sr. João, levou a filhinha dele embora, e ainda por cima matou minha mãe!” “Ela não merece ser perdoada!” “Mas eu também não mereço o perdão de Deus!” “Ah, Senhor, eu queria perdoar ela, mas não consigo!”

Ela ficou vários minutos assim, pensando sem tentar organizar os pensamentos, tentando entender como Deus queira que ela agisse. Cansada depois de todas as emoções do dia, ela nem percebeu quando o sono veio por trás dela de mansinho e, silencioso, puxou-a levemente para os seus braços. Seus pensamentos ficaram inconclusos, mas a semente do perdão já brotara no seu terno coração, e uma boa noite de sono ajudaria esta planta frágil a brotar e crescer.

Deus, na Sua misericórdia, estava ensinando-a passo a passo, um dia de cada vez — em breve ela descobriria que precisaria perdoar a Cláudia por coisas ainda maiores!



Comentários